POR MIRELA BORGES
Segundo dados da consultoria Kantar Worldpanel, 70% das brasileiras têm os cabelos cacheados e crespos. Apesar disso, por anos, os fios naturais sofreram preconceito e, por esse motivo, era comum muitas mulheres usarem químicas para mantê-los lisos. Atualmente, contudo, o processo de transição capilar vem ganhando adeptas. Mas você sabe o que é transição capilar? É o processo que o cabelo quimicamente tratado passa para retornar ao natural, ou seja, o abandono dos procedimentos químicos de alisamento para os cabelos crescerem em suas formas originais.
A transição capilar afeta, principalmente, o amor-próprio de quem que está passando por esse processo, mas se engana quem pensa que é de maneira negativa. “Agora que estou no final da transição capilar eu posso dizer, com certeza, que vivo uma das melhores fases da minha vida em relação a autoestima. Mesmo quando tinha o cabelo liso eu não gostava, pois qualquer coisinha ele ficava cheio de frizz, agora não, por mais que meu cabelo tenha frizz isso é algo natural do cabelo cacheado e de qualquer forma sei que ele está lindo”, descreve a auxiliar administrativa Lívia Bortoluci, que começou o processo no final de 2019.
O sentimento de aceitação é compartilhado também pela estudante Luiza Gonçalves Costa. Porém, ela percorreu um longo caminho com muitos desafios, causados pelo preconceito em relação a seu cabelo, até conseguir se aceitar. “Havia sempre muitos comentários negativos, piadas, olhares tortos. Lembro de um dia na escola, por estar muito frio, eu estava usando uma touca e um grupo de meninos puxou a touca da minha cabeça e começaram a rir do meu cabelo. Esse dia me marcou bastante. Fiquei refletindo: ‘será que se o meu cabelo fosse liso igual ao das outras meninas eles iriam rir e me zoar assim?’ No começo eu chorava muito. Mas não quero voltar a usar química no cabelo só para agradar as pessoas. Então eu supero tudo isso sempre pensando o contrário, que meu cabelo é bonito sim, que eu sou linda da minha forma e nada vai mudar isso. Sinceramente às vezes tenho recaídas e me sinto mal, principalmente quando fazem comentários negativos sobre meu cabelo. Mas por outro lado a transição faz eu me aceitar e me autoconhecer cada vez mais. Isso é um resultado muito positivo pra mim. Me sinto muito bem.”
Neste momento de isolamento social, o processo de transição capilar vem ganhando cada vez mais força, já que, em casa, muitas pessoas têm mais tempo para se cuidar. Luiza Gonçalves Costa decidiu aproveitar seu tempo para se livrar das químicas no cabelo. “Desde criança, eu fui muito influenciada com a ideia de que o cabelo crespo não era bonito, apenas o liso. E isso tudo me fez ver o meu cabelo de uma forma negativa e acabar não aceitando ele natural. Mas, agora na quarentena, eu tive muito tempo pra refletir e olhar para mim mesma. Resolvi deixar meu cabelo natural. É uma característica única minha. Já sofri muito preconceito por ter a raiz crespa. Muitas coisas, pessoas e comentários me fizeram acreditar que meu cabelo natural não era bonito. Agora estou desconstruindo toda visão negativa que tive do meu cabelo por todos esses anos. É um processo muito complicado e levou tempo, mas a cada dia me esforço para me auto conhecer e me aceitar ainda mais, ficar em casa agora na quarentena me ajudou muito com tudo isso.”
O processo é demorado, leva meses para o cabelo voltar ao natural, em alguns casos até anos. “É preciso aceitar que não vai ser do dia pra noite, o processo demora meses e o mais difícil é quando você se arruma e seu cabelo não está tão legal quanto você queria. No começo da transição foi muito ruim, meu cabelo estava metade enrolado e metade liso, e não poder usar chapinha era o pior desafio. Eu comecei a ficar mais tranquila em relação a aparência dele em fevereiro/março deste ano”, enfatiza Lívia Bortoluci.
TRANSIÇÃO CAPILAR MASCULINA
Apesar das mulheres serem a maioria a adotar a transição capilar, cada vez mais os homens estão optando pelo processo, assim como o jornalista Helton Kempe que, após anos mantendo o cabelo alisado, decidiu deixá-lo crescer com a textura natural.
“Quando criança, meu cabelo natural era cacheado, porém, devido aos cortes frequentes com ‘maquininha’ acabou ficando liso e volumoso. Faz quase um ano que eu não corto meu cabelo, tenho notado uma significativa melhora na qualidade e resistência dos fios.” Uma decisão que mexeu muito com sua autoestima “Durante esse período de transição pude observar inúmeros impactos na minha autoestima, desde físicos à emocionais. Eu estava cansado de manter o mesmo penteado por vários anos. Queria algo novo! Sinto que meu cabelo está mais forte e brilhante. Estou feliz por conseguir alcançar o meu objetivo inicial de deixar o cabelo crescer para manter meus cachos.”
A transição capilar vale a pena, apesar de demorado o resultado é prazeroso, principalmente quando se tem apoio, como ressalta Helton Kempe. “Desde o início da transição capilar, sempre contei com o apoio da minha família, dos meus amigos e de colegas de trabalho. O carinho e acolhimento das pessoas ao meu redor me ajudaram muito durante o processo. Ainda tenho uma longa jornada pela frente, mas sei que posso contar com eles.”
GRUPO DE APOIO
O grupo Melanina, criado em 2017, surgiu a partir da ideia de criar um coletivo de apoio para ajudar as pessoas a lidarem com suas dificuldades. “A princípio visávamos apenas cuidados estéticos, mas estamos ampliando cada dia mais nossa forma de pensar e expor assuntos que são vistos como polêmicos. Os conteúdos que postamos nas redes sociais são produzidos mediante as muitas mensagens com pedidos de ajuda que recebemos. Além do Facebook, publicamos conselhos e tutorias em nossa página no Instagram, @mmelanina, assim conseguimos alcançar várias pessoas que precisam de ajuda.”, explica a designer de unhas, Ana Laura Carvalho, que já sofreu muito preconceito por causa de seu cabelo. “Um dia, eu estava andando na rua e uma senhora me parou e perguntou se eu não tinha medo de pegar piolho devido ao meu cabelo ter bastante volume, fiquei sem reação no momento, apenas ignorei ela e sai andando. Eu me senti diminuída, fiquei abalada no momento que aconteceu, mas não deixei de usar o cabelo como eu gosto.”
Ana Laura afirma que participar do grupo a ajudou a superar os traumas do preconceito. “Na empresa onde eu trabalhava, um funcionário fez piada com o cabelo também, disse que se pegasse piolho nunca mais sairia apenas raspando a cabeça. Fiquei bem constrangida e decepcionada, tinha mais duas funcionárias no local e elas riram bastante, na hora eu apenas fui pro banheiro e acabei chorando… pensei até em pedir demissão, mas acabei percebendo que o melhor a ser feito era ignorar no momento. Estar no grupo me ajudou bastante a superar esses episódios de preconceito, principalmente a me impor mais e saber que sou capaz de conquistar o que eu quiser e estar onde mereço, independente de olhares tortos.”