POR CLOVIS VIEIRA, PEDRO HERNANDEZ E MATEUS ANANIAS

O sol começa a surgir e já lança sua luz perpendicular sobre caixas de madeira com frutas, em bancas sendo montadas, sacos de cebola e batata, caminhões e peruas Kombi chegando e despejando verduras fresquinhas. A luz do sol também recai sobre pessoas de todas as idades que ali chegaram há muito tempo, ocupados na faina de organizar mercadorias, separar dinheiro para o troco, escrever crachás para os produtos, abrir cadernos de ‘fiado’.

Aos poucos, uma infinidade de sons invade o galpão, transformando-o numa caixa de som difuso, com vozes de todos os tons, ruído de veículos, música vinda de radinhos de pilha, feirantes gritando suas mercadorias. Como em câmera lenta, a vida na feira ressurge com seus personagens típicos e seu propósito de alimentar a cidade com comida boa, plantada e colhida por mãos rústicas e santas.

TRABALHO ÁRDUO
“Se você não começar cedo e pegar firme não consegue um bom resultado”, explica Eduardo Rinke Menato, 34 anos de feira. Diz ter que enfrentar sol quente e chuva e, ainda, lidar com agrotóxicos: “é puxado. É muito trabalho, você tem que deixar o seu sangue lá.” Admite, também, que o resultado financeiro desse esforço não permite a contratação de funcionários, o que facilitaria em muito o seu dia a dia.

EDUARDO

Acho que foi a década de 1950. Quando meu pai começou na feira, ele vinha de charretinha, de bicicleta; morava em fazenda e sempre que o dono deixava, ele fazia uma hortinha onde plantava umas abóboras, uns pepinos e vinha trazer pra feira”, contou Eduardo Rinke Menato, 44 anos, 34 deles dedicado a este ofício, ou até mais, porque começou criança, orientado pelo pai. “A gente acompanhava meu pai, eu via o pai vir para cá e comecei a vir também”.

Enquanto ele conversa com a reportagem, é seu filho quem fica na banca atendendo os clientes. “Ele tem 17 anos e hoje me ajuda menos aqui, mas nas férias da escola eu o levo para o sítio para ele aprender alguma coisa”, explicou. “A gente quer que ele tenha uma vida melhor, que estude, que tenha uma profissão melhor”. Apesar dessa declaração, Eduardo filosofa sobre a dignidade do trabalho que ele e seus colegas realizam da feira.

HERANÇA CULTURAL
A palavra feira vem do latim, feria, que significa dia de festa. As tradições culturais das feiras refletem sua história. Um espetáculo em forma de mercado, uma bagunça organizada, o imaginário cenográfico das barracas, da abundância de produtos, das frases improvisadas – e muitas vezes inoportunas – de feirantes xavequeiros bons vendedores, fazem parte dessa herança cultural que transforma as feiras em um espaço lúdico, atemporal e familiar.

CUIDADO COM A TERRA
Muito antes de montar sua banca e começar a atender a clientela, um longo trabalho anterior já deverá ter sido feito. Eduardo mora em um sítio, na Serra da Paulista, onde planta e colhe o que vende. Para não faltar o que oferecer, ele diz que precisa planejamento, embora sozinho nessa empreitada. “Tem um rapaz que trabalha para mim em dois dias da semana, mas no resto é só eu e Deus, mesmo”. Ele lamenta não encontrar mais a mão de obra que precisa em seu sítio. Diz que os jovens não querem saber mais de trabalhar na zona rural: “eles não querem aprender sobre isso, querem arrumar um trabalho numa firma; eu acho que quando ‘acabar’ esse pessoal mais velho, não vai sobrar ninguém para trabalhar na roça”. A solução é esta: nas manhãs em que não está na feira, está lidando com a terra, plantando e colhendo.

Em dias de trabalho na cidade, ele chega no local por volta das 3h30. “Eu faço feira na terça, quarta, quinta-feira à noite e no domingo. Só não faço a de sábado, no DER”. Abóbora, jiló, berinjela, vagem, maracujá, manga… fazem parte da variedade que oferece ao seu cliente. Em algumas ocasiões, ele também compra o que está faltando.

A boa notícia é que grande parte da população voltou a comprar em feiras livres, assegurou. “A gente está vendendo bem; hoje o pessoal está muito voltado para esses produtos naturais, que ele sabe de onde vêm”. Quando fala dos tempos da pandemia do Covid 19, revela que a maioria dos feirantes não sentiu queda nas vendas. Naquele tempo sombrio, em São João, a prefeitura permitiu que as feiras permanecessem em atividade, diferente de muitas cidades da região. “A gente só sentiu a falta das pessoas de mais idade, que deixaram de vir”. E aponta que a realização da feira nas noites de quinta tem atraído mais jovens, além da clientela habitual, formada mais por mulheres a partir dos 40 anos.

TODO TIPO DE PRODUTO
Na feira livre, a diversidade de produtos é a chave para uma alimentação saudável. Das frutas às verduras, dos legumes aos cereais, temos um verdadeiro banquete de opções nutritivas. No total, o Brasil possui 4,1 milhões de pequenos produtores, segundo dados da Secretaria Nacional da Agricultura Familiar e Cooperativismo, divulgados em 2020.

VALOR

Eduardo não se queixa do trabalho que realiza nesses dias de feira, mas afirma que sua atividade no sítio acaba se tornando muito pesada. “Se você não começar cedo e pegar firme não consegue um bom resultado”. Diz ter que enfrentar sol quente e chuva e ainda lidar com agrotóxicos: “é puxado. É muito trabalho, você tem que deixar o seu sangue lá.” Admite, também, que o resultado financeiro desse esforço não permite a contratação de funcionários, o que facilitaria em muito o seu dia a dia. “Chegar aqui com a coisa pronta, é fácil”.

Em dia com os acontecimentos no mundo, esse trabalhador lamenta que o custo operacional do seu trabalho tenha ficado tão caro. É o maquinário que pode quebrar, o adubo cujo preço vem subindo em virtude a pandemia, das guerras atuais que influência o mundo. “Hoje, tudo o que se vai comprar tem valor, e às vezes, a mercadoria que se está colhendo não consegue pagar isso aí”.

Buscando o lado bom disso tudo, no entanto, Eduardo conta que gosta muito do que faz, do plantar e da colher. “Até mesmo da roça eu gosto muito, é sofrido, mas é prazeroso, ver uma planta bonita, colher mercadoria boa, receber o freguês que reconhece o seu trabalho”. Além dos amigos que faz entre os clientes e que são para sempre.

PEQUENOS PRODUTORES, MAS COM GRANDE IMPORTÂNCIA

Como Eduardo já aponta, a pequena propriedade – embora garanta 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros e respondam por 5% do PIB, continua distante do agrotech 4.0; excluída por conta da escolaridade, da falta de conectividade e do acesso limitado ao crédito. “Quando falamos do pequeno produtor, temos que valorizá-los cada vez mais e pensar nos desafios que são enfrentados por eles diariamente, como o acesso a máquinas e equipamentos, que possam melhorar o desempenho do serviço ou até mesmo a alta dos preços dos insumos básicos para a produção, considerando ainda a dificuldade de repassá-los ao consumidor. Vale ressaltar também que a informalidade ainda existe, o que dificulta também o acesso ao crédito”, destacou Junior Correia, gestor de agronegócio do Escritório Regional do SEBRAE de São João da Boa Vista.

ENORME POTENCIAL
A agricultura familiar, que garante 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros, continua distante do agrotech 4.0, excluída por conta da escolaridade, da falta de conectividade e do acesso limitado ao crédito. Isso porque, apenas com investimento em conectividade e inclusão digital, o país poderia dar um salto de até R$ 78 bilhões no valor bruto da produção agrícola.

Junior destacou que de forma técnica, existem as capacitações oferecidas pelo SENAR (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural), através do Sindicato Rural, com temas voltados as boas práticas agrícolas, controle de pragas e doenças, dentre outros, mas vale destacar que muitos produtores ainda possuem uma certa dificuldade em realizar a gestão do negócio, através da adoção de controles gerenciais, planejamento, marketing, vendas (porteira pra fora) e é aí que entra o SEBRAE, para dar esse suporte de forma gratuita.

Além disso, se a tecnologia é um fator preponderante para aumentar a produtividade, a conectividade e o uso de ferramentas digitais definem a inclusão ou a exclusão de produtores rurais no processo. Os dados do Censo Agro 2017, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), também apontam baixa escolaridade na agricultura familiar: 21% dos produtores brasileiros não sabem ler nem escrever; 15%, nunca frequentaram a escola; e 43% têm até o ensino fundamental. Junior explica que esse é um desafio que precisa ser enfrentado também, através das instituições públicas e privadas, com o objetivo de elevar os indicadores na educação dos produtores. “Não adianta que a tecnologia chegue na zona rural e o pessoal não esteja capacitado para operá-la”. Ele também destaca a importância da organização dos produtores através das associações e/ou cooperativas de modo que a coletividade, possa colaborar também na superação dos desafios individuais.

UM MUNDO A PARTE

Agora a todo vapor, a feira se torna quase um ‘laboratório social’, onde mesmo o olhar atento não consegue diferenciar a patroa da empregada, o feirante do freguês, o doutor do pedinte. E os cheiros! Eles se misturam contaminando o ar com promessas de delícias, aroma de pamonhas quentinhas, de café fresco, de doces de amendoim sendo despejados em formas de madeira. E os narizes sorvendo o cheiro de frutas maduras, percebendo as gaiolas das aves, separando os ovos bons que se transformarão em bolos, pudins…

Esses produtos, feitos de maneira artesanal, representam um potencial enorme para quem produz, especialmente quando pensamos no valor agregado – ou seja, é mais rentável vender uma pamonha do que a espiga de milho. Mas, o que muita gente não sabe é que esses produtos artesanais não podem ser comercializados em estabelecimentos como supermercados, padarias e empórios, uma vez que não possuem o Selo de Inspeção, que pode ser federal, estadual ou municipal. Esse selo dá ao produtor a autorização necessária para vender em escala municipal, estadual ou, até mesmo, para fora do país.

FORMALIZAÇÃO DAS AGROINDÚSTRIAS

Essa é a principais dificuldades na formalização das agroindústrias artesanais, uma vez que para obter esse selo, é necessário cumprir as mesmas exigências cobradas de grandes agroindústrias, por exemplo. “Por isso são importantes as iniciativas que buscam desburocratizar e facilitar o acesso a esses serviços, facilitando a comercialização de produtos sem perder a qualidade e segurança sanitária”, explicou Junior.

Segundo ele, é ai que entra a regulamentação do Selo de Inspeção Municipal (SIM). Com ele, as agroindústrias familiares que produzem alimentos de origem animal, como derivados do leite, ovos, carne e mel podem se formalizar, o que permite ampliar o leque de clientes, deixando de ser comercializado apenas nas feiras livres e/ou de maneira informal e indo para prateleiras de mercados – por exemplo. “Além dos selos, o produtor ainda deve adequar o produto às regras de rotulagem, de rastreabilidade, tabela nutricional – açúcar, sódio, gordura trans, entre outros. Porém, isso depende do produto que está sendo produzido, alguns possuem outras particularidades. Isso permite dar segurança tanto para aquele que produz, quanto para aquele que consome”, finaliza Junior Correia, que destaca ainda que o SEBRAE oferece consultoria técnica onde são disponibilizadas as informações de como proceder com cada selo.

Em São João da Boa Vista, segundo o Departamento de Desenvolvimento Econômico, o Selo de Inspeção Municipal está em implantação.

TODO MUNDO SE ENVOLVE
Solange leva junto para a feira os dois filhos que ajudam a passar cartões de crédito, realizar pagamentos via Pix e fazer cálculos complexos. O marido participa ativamente na colheita, montagem das bancas e vendas. Metade dos produtos vendidos é cultivada pela própria família, incluindo jiló, berinjela, abobrinha,
quiabo, brócolis e milho.

TRADIÇÃO FAMILIAR

De volta à feira livre, conhecemos a história de Solange Maldonado Nalli, 39 anos; trajetória muito parecida com a de Eduardo. Antes dos 10 anos de idade, ela e as quatro irmãs já acompanhavam os pais. Eles traziam o resultado do plantio para vender na feira, vindos em carroça puxada a cavalo. “No começo, eu e minhas irmãs trabalhávamos com meus pais, éramos sete pessoas; mas, hoje, duas delas pararam com essa atividade”, contou.

A decisão de continuar trabalhando na feira tem uma simples e triste explicação: “Ah, fazer o quê, eu quase nem tenho muito estudo, fui criada nessa atividade e agora tenho que seguir, não é?” O tempo que seria destinado aos estudos lhe foi furtado pela necessidade de trabalhar na roça, de colher mexericas, de arrancar cebolas, amendoim… “Sim, eu me arrependo de não ter estudado, eu queria ser diferente. Eu queria uma vida mais sossegada, mais tranquila, ter tempo de me arrumar, ter mais tempo para mim e ter dias em que não precisasse trabalhar tanto…

Casada há 20 anos, seus dois filhos a acompanham na feira e se incumbem da parte ‘tecnológica’ das vendas, passando cartões de crédito pela maquininha, finalizando um pix, fazendo somas complicadas. O marido participa ativamente no processo de colheita, na montagem das bancas e nas vendas. O restante da família põe a mão na massa: metade do que vende são eles mesmos quem plantam: jiló, berinjela, abobrinha, quiabo, brócolis, milho. A outra metade é comprada em entrepostos como o CEASA (Centro Estadual de Abastecimento).

Solange também mora em sítio. “Nós levantamos cedo no sábado e organizamos toda a mercadoria; daí a gente vem para feira à noitinha e já fica por aqui, atravessamos a madrugada e só voltamos para casa ali pelas 16h”. Em dias de sorte, sua mãe prepara o almoço do domingo, o que facilita a vida. “Mas tem vez em que ela não faz… não gosta muito de cozinhar” e ri dessa declaração.

Porém, todo esse trabalho e sacrifício caem por terra quando enfrenta a falta de reconhecimento por uma parte da clientela. “Algumas pessoas não dão valor à produção rural, algumas mulheres reclamam até dos produtos mais bonitos, daí você põe um preço mais razoável na mercadoria e, mesmo assim, elas reclamam e fazem comparações com os supermercados”. Atualmente, ela e sua família trabalham em apenas duas feiras livres na semana, afirmando que as vendas estão muito fracas.

Sua característica, percebida de longe por quem frequenta a feira, é o modo de chamar a atenção de todos, no grito, oferecendo o que trouxe para vender. Solange diz que aprendeu a estratégia com o pai a fim de atrair a atenção do cliente e vender mais rápido o que ainda está na banca. “Problema, mesmo, é a quinta-feira”, ela diz. Alguns supermercados fazem promoção de verduras e legumes nesse dia da semana e o movimento na feira vem caindo muito.

Mas ela é otimista e não desiste. “Aqui na feira tem muitas pessoas boas, que sempre compram da gente, eles chegam e já falam que gostam de conversar, gostam de dar umas risadas porque a gente gosta de brincar com elas”. Ela também se diverte com esse contato e esse relacionamento eventual, porque é o momento de esquecer as questões pessoais: “a gente tem que deixar os problemas em casa e vir pra cá, não é mesmo?” finalizou com um sorriso.

ROTINA

Fim de feira, hora da xepa. Uma certa melancolia começa a se espalhar pelo galpão. Os sons diminuem de intensidade, a mercadoria que sobrou é recolhida num ritual conhecido e automático. Parte dessa sobra será vendida a restaurantes, outra porção é oferecida a quem vem pedir porque não pôde comprar. Caminhões e peruas Kombi vão saindo, as bancas desmontadas parecem praticáveis de um teatro. Os muitos personagens que se cruzaram nessa cena dispersam-se em muitas direções. Hora de conferir o resultado, de somar os lucros, de pensar na feira livre de amanhã.