POR DIANDRA TONON

O ano era 1931, nascia em São João da Boa Vista, no dia 17 de junho, Lucila Martarello, filha de Jordano Martarello e Emma Gallo Martarello. Mais tarde passou a chamar-se Lucila Martarello Astolpho, seu nome de casada.

A família residia em uma fazenda, próximo à cidade de Águas da Prata. Seu pai faleceu quando ela estava com dois anos e a mãe mudou-se para São João da Boa Vista com os oito filhos. Segundo Lucila, sua mãe vendeu propriedades do esposo para ajudar em casa e na formação dos filhos. “Ali numa casa do Largo das Palmeiras, minha mãe criou todos os filhos. Ela dizia que não queria que trabalhássemos na terra, queria que estudássemos. E todos nós estudamos”, recorda, Lucila.

Durante a época dos anos 60 e 70, onde poucos tinham oportunidade de estudar, Lucila conseguiu almejar seus objetivos, que eram os de ter um curso superior e poder lecionar. E tudo isso aconteceu depois do casamento com Ulysses Astolpho, tido por ela como um marido exemplar. “Quando eu me casei, meu marido não me impediu de continuar a fazer as coisas de que gostava. Eu lecionava bailado espanhol e castanholas, tinha 10 alunas. E até hoje, com as mãos cheias de artrite e artrose, ainda bato castanholas. Conheci meu marido dançando no palco, ele estava atrás, me olhando… Ele passava, dava uma ‘olhadinha’, até nos conhecermos. Foi uma vida muita linda juntos, 61 anos de casados. Tivemos cinco filhos e sete netos. Vivemos muito bem, muito felizes”, ressalta.

A mãe de Lucila gostava muito de ler e sempre ensinava alguma coisa para os filhos, ela acredita que isso tenha inspirado a família toda, quando menciona: “Todos os meus filhos e netos, felizmente, são bem-sucedidos. Maria Fernanda agora se aposenta como Supervisora de Ensino. Tenho a Sílvia que é engenheira, e trabalha no Brasil todo. Flávia, que é psicóloga e advogada, mora em Florianópolis e o Ulysses Júnior, que é médico e mora no Rio de Janeiro”.

Dona Lucila e o esposo Ulysses moraram durante 16 anos na Fonte Platina, em Águas Prata. Após o falecimento do marido, há uns meses, Lucila voltou para São João da Boa Vista.

HINO DE SÃO JOÃO

“Eu era amiga do senhor Otávio Pereira Leite, que era presidente e fundador da Academia de Letras da cidade, a qual eu também pertencia. Ele sempre pedia para que eu escrevesse alguma matéria para colocar no jornal e, naquele dia, o assunto deveria ser o do aniversário da cidade, pois era mês de junho. O pedido era para que fosse em forma de hino. Escrevi no intervalo das minhas aulas. No dia seguinte, eu viajei para o Rio de Janeiro, e não soube mais nada. Eu não sabia que era um concurso, achei que fosse uma matéria que eu deveria escrever, como sempre fazia. Quando voltei, minha sobrinha disse:- ‘Tia, a senhora ganhou!’ -‘Ganhei o quê?’ -O hino da cidade! Tinha sido um concurso e eu tinha vencido”!

Lucila conta que ficou muito feliz por ter tido o prazer de ser a escolhida para perpetuar esse hino. “Eu fiquei muito contente. Todos fizeram muita festa”, lembra.

A professora, explica que tudo foi muito rápido quando escreveu as estrofes que se tornaram, mais tarde, a letra da música da cidade, inspirada nos “crepúsculos maravilhosos” – o município é popularmente conhecido assim, pela beleza do céu entre o dia e o por do sol.

“Eu fico muito feliz quando as pessoas lembram, quando ouço cantar nas escolas, e em apresentações solenes. Foi bem rápido, como se diz por aí, ‘numa sentada’, nos intervalos das aulas, olhando a beleza da cidade. Isso tudo me inspirou… A cidade, o pôr do sol, as montanhas, as pessoas…Tudo foi uma inspiração. E saiu o hino, com a graça de Deus”.

O hino é escrito em forma de poema e nele foi inserida uma melodia para ser cantada. Fábio de Carvalho Noronha foi quem criou os percursos sonoros que fazem parte do álbum Rosa Encarnada, que foi lançado em 1986 por Luciano e Labareda. Segundo, Lucila, Nazareth Nogueira, com sua voz privilegiada, também participou da primeira gravação. “Fábio foi um amigo, ele era músico, fez também outras músicas, para alguns candidatos desse concurso do hino da cidade. Então nem fui eu quem pediu a ele que fizesse a musicalização. Dona Beloca era amiga dele, minha amiga também, foi quem pediu para colocar a música, ele colocou e deu certo”.


hino de SÃO JOÃO

Letra: Lucila Martarello Astolpho
Melodia: Fábio de Carvalho Noronha

Em momento de amor infinito,
Foi que Deus com sublime emoção,
Do pedaço de um solo bendito,
Fez a nossa querida São João.
Com ternura moldou lindas serras
E, altaneiras, ao céu as ergueu.
Pôs o rio Jaguari sobre as terras
E, a sorrir, tudo isso nos deu.
Oh! Terra encantada,
Por nós adorada,
De povo irmão
Na mesma cadência,
Vibra e palpita
Um só coração.
Realçando as belezas criadas,
Fez o sol se esconder, majestoso,
Coroando as tardes caladas,
De um crepúsculo maravilhoso.
Sempre hospitaleiro e querido
O seu povo encanta e conquista
Um recanto do céu desprendido,
Eis, aí, São João da Boa Vista!
Oh! Terra encantada,
Por nós adorada,
De povo irmão
Na mesma cadência,
Vibra e palpita
Um só coração.
A cidade se desdobra e cresce
Numa linha triunfal, ascendente.
Testemunho de fé aparece
Na história fiel de sua gente.
O progresso de perto acompanha
Sua inteligência e saber…
É uma bênção viver nesta terra
E uma Glória um dia aqui morrer.
Oh! Terra encantada,
Por nós adorada,
De povo irmão
Na mesma cadência,
Vibra e palpita
Um só coração.
Hino de São João
Letra: Lucila Martarello Astolpho
Melodia: Fábio de Carvalho Noronha

Gabriella de Oliveira Costa, popularmente conhecida como Beloca, sanjoanense, primeira vereadora da cidade em 1932, trabalhou na Casa do Soldado, instituição organizada no município. Ela se dirigia até as trincheiras da revolução, para que nada faltasse aos combatentes. Produziu também muitos espetáculos teatrais infantis na cidade, no Theatro Municipal, entre eles Pinóquio e Os 3 Mosqueteiros. A banda da cidade leva o nome dela: , dedicada a sua constante luta pela cultura de São João.

BANDEIRA DE SÃO JOÃO

Além do Hino, Lucila escreveu um poema para a bandeira da cidade, demonstrando seu amor pelas terras sanjoanenses. “Um professor do Instituto de Educação, foi quem idealizou a bandeira de São João, levou até a prefeitura tornando-a oficial. A bandeira era toda verde com uma faixa branca no meio que representava o Rio Jaguari. Em uma determinada época, Dona Beloca, achou a bandeira muito simples e disse que iria mudá-la, eu falei: ‘Dona Beloca, não pode, a bandeira já está oficializada’. Ela disse: ‘Pode sim! Está muito simples’. Ela foi até São Paulo, comprou as coisas que precisava para ‘melhorar’ a bandeira com bordados dos desenhos que marcam as produções agrícolas na cidade”. Entre os cadernos de poemas em sua casa na Fonte Platina, o poema do amor dela à bandeira:


Bandeira de São João

Para falar da Bandeira,
em forma de saudação,
nas asas da poesia,
busquei minha inspiração!
Bandeira de minha terra,
cheia de graça e beleza!
Olhando-a, sinto-me inteira
dentro da natureza.
No seu campo todo verde,
cortado por faixa branca
é o Rio Jaguari que passa
Beijando esta terra santa!
O azul que simboliza
justiça, elogio, formosura,
está bem localizado,
querendo dizer doçura!
Esta coroa em mural,
com cinco pontas erguidas,
representam bem as fábricas,
desta cidade querida.
No alto o sol heráldico,
lembra o crepúsculo sem par,
desta terra sanjoanense,
que não cansamos de amar!
No centro, o cordeiro pascal,
simbolizando São João,
padroeiro desta terra,
toda em volta em oração!!
A Serra da Mantiqueira,
que temos a perder de vista,
justifica sua alcunha:
São João da Boa Vista!
Quando a vejo desfraldada,
nas panóplias de um recinto,
fico muito emocionada,
tão grande o amor que sinto!
Simples pedaço de pano,
representando São João!
Parece que foi tecida,
com fibras do coração!

Lucila foi professora titular da Cadeira de Filosofia da Educação na então Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras de São João da Boa Vista. “Todos os dias foram encantadores nas escolas. Gosto muito das pessoas que trabalharam comigo. Sempre fomos muito amigos, os funcionários e alunos. Até hoje, quando eu os encontro cumprimento com muita alegria. Foi uma época muito feliz na minha vida, que marcou história.Tenho saudade”!

TEATRO ESCOLA

O grupo teatral da cidade na época era conhecido com o nome de Teatro Escola. Lucila participava dele ativamente com o pároco da catedral São João Baptista, Padre Antônio David, coordenador do grupo: “Eu era ‘artista’, gostava muito de tomar parte das apresentações. Era o padre que acompanhava nossos ensaios e as pessoas mais velhas da cidade iam prestigiar as apresentações. Eu gostava muito disso, de dançar, e num dia chamaram uma dançarina de Campinas para fazer uma apresentação. No dia, ela ficou doente e não veio, então disseram: ‘A Lucila irá dançar’! E de última hora minha mãe improvisou uma roupa de balé pra eu me apresentar. Eu sabia um ‘pouquinho’ de dança, e lá fui eu. Nenê Farnetani, que era o músico, estava no pé do palco com sua banda. Foi tudo criado no momento. E o Nenê não parava de tocar… Morta de cansada, eu queria parar e não conseguia, porque ele não parava a música… Então eu pensei: existe a peça da morte do Cisne, então eu vou cair aqui, vou falar que o cisne morreu. Me abaixei, deitei no palco “de cansada” que eu estava. E alguém no fundo do palco gritou: ‘Chama o Balestrin’! [Balestrin, era o nome de uma empresa funerária na época em São João da Boa Vista] Foi muito engraçado. Aplaudiram, mas deram muitas risadas”.

ARTISTA DE TEATRO- Em cena, Lucila Martarello Astolpho e Wanderley Perri, durante a peça O Casca Grossa.(Foto: Arquivo pessoal – Lucila Martarello Astolpho)

COMO É BOM EDUCAR

O ano não é recordado, mas com alegria ela conta das aulas aos padres. “Ajudei a formar muitos padres, contribui um pouquinho na formação deles. Eles eram ótimos, estudiosos. Às vezes até aprendia com eles… Fiz palestras no Curso de Noivos como voluntária na igreja de São Benedito, – Localizada até hoje no Bairro São Benedito – algo que me agradava muito, porque depois que terminava o curso e eu encontrava alguns que já tinham se casado, eles vinham me dizer: ‘Olha, dona Lucila, quando vou me deitar me lembro da senhora”! Eu dizia: Por quê? “Porque a senhora sempre dizia que não podemos dormir brigados, temos que dormir de mãos dadas para no dia seguinte acordar bem’. “Que bom, né”! “Porque pelo menos eu pude contribuir com a felicidade de alguns”.

Segundo Lucila, lecionando, sempre teve bons momentos e eles não eram só em português, o francês também a fazia feliz.“Na época da educação sempre aconteciam coisas agradáveis. Eu estudei no Colégio Santo André e depois de formada, eu fui lecionar lá também e meus filhos nasceram na época em que trabalhava lá. Sempre gostei muito das irmãs que lá viviam e vivem até hoje. Minhas professoras eram algumas belgas, então, o francês ali se falava. Eu tinha um ‘cachorrinho’ que ia sempre comigo para o colégio, e a professora francesa, brigava com ele em francês e ele entendia. Era tão engraçado! Fui muito feliz lá… Gosto muito das irmãs”.

Trabalhou 34 anos na UNIFEOB, como professora universitária nas áreas de Filosofia da Educação e Didática. Aposentou-se lá como diretora. Além das aulas nas escolas, grupo de teatro e as aulas de castanhola, Lucila trabalhou também no Museu Histórico e Pedagógico Dr. Armando Salles de Oliveira. “Fiquei comissionada 14 anos como diretora do Museu de São João, conheci muita gente e gostava de atendê-los”.

AINDA É BOM SER LEMBRADA

Eu me dei muito bem com o ensino. Se eu tivesse que escolher uma profissão novamente, seria professora de novo. É muito agradável, á gente no fim da vida, ser lembrado”.

A palavra lembrança no dicionário significa: ação ou efeito de lembrar-se. Com certeza, Lucila Martarello Astolpho é, e sempre será lembrada por gerações sanjoanenses como uma pessoa que fez e faz a diferença. Educar é uma tarefa difícil, mas não impossível quando a profissão é feita com amor. Em homenagem, o teatro localizado na Cidade das Artes – complexo cultural inaugurado em fevereiro deste ano-, por iniciativa da Prefeitura, recebeu o nome de Teatro Professora Lucila Martarello Astolpho – Cidade das Artes.