Ao completar 200 anos de fundação, é importante celebrar as famílias históricas, imigrantes, negros, comércios e indústrias que edificaram a cidade
POR DANIELA PRADO, NICKOLAS SANTOS E PEDRO HERNANDEZ
São João da Boa Vista, esta “terra encantada, por nós adorada de um povo irmão”, completa, em 24 de junho de 2024, 200 anos de fundação. E é com entusiasmo que os filhos desta terra veem seu progresso chegar, com novos cursos de graduação, novas tecnologias, entre outros aspectos futuristas, para ampliar o destaque do município no cenário nacional.

Felipe Cabral de Vasconcellos e sua esposa Lucina Raposo, portugueses e pais de Henrique Cabral de Vasconcellos, marcaram o início do comércio sanjoanense depois que adquiriram o palacete onde hoje funciona o Banco do Brasil
Chegar aos 200 anos traz ainda certa nostalgia e a vontade de descobrir como tudo começou. Quantas mãos unidas montaram esse quebra-cabeça, ao longo destes dois séculos? Segundo dados colhidos pelo professor Lourenço Maria Prunes, catedrático de geografia humana na Faculdade de Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul (UFRGS), nossa cidade já teve por nomes Santo Antônio do Jaguari, São João do Jaguari e finalmente São João da Boa Vista.
E as primeiras famílias sanjoanenses? Pois bem, no livro História de São João da Boa Vista, que da Professora Maria Leonor Alvarez Silva escreveu, respaldada por pesquisa realizada por Matildes Rezende Lopes Salomão, consta que a primeira família recenseada em São João foi a do guarda-mor português José Antônio Dias de Oliveira, casado com dona Ana Franco de Oliveira. Eles vieram da cidade do Porto, tendo respectivamente 62 e 49 anos de idade – dados colhidos do Arquivo Público de São Paulo, caixa 115, referente a Moji Guaçu, ano 1822.
O casal chegou a Caldas (MG) em 1892 e, em 1894, com o falecimento de Inácio Franco [pai de dona Ana], passou a residir em latifúndio da família, em gleba herdada. Até que, em 1897, adquiriram a fazenda Campo Triste, parte da extensa sesmaria que abrangia todo o território onde atualmente é o município de São João da Boa Vista, tanto na zona urbana como rural.

José Cabral de Vasconcellos já tinha comércio consolidado em Portugal. Em São João, começou trabalhando com tecidos e implementos agrícolas, abrindo posteriormente um armazém de secos e molhados.
RECENSEAMENTO DE 1822
Voltando ao recenseamento anual de 1822, realizado nesta região, foram registrados os nomes dos filhos e escravos de José Antônio Dias de Oliveira e dona Ana Franco de Oliveira – os que estavam presentes, pois os soldados designados pela Companhia de Ordenança para tal função só registravam nomes das pessoas que encontravam, bem como idade e condições de vida.
Além do próprio casal, estavam os filhos Gabriel, à época com 22 anos, Francisco [18], João [12], Sabina [10], José [7], Joaquim [8], Helena [24] e Mariana [20]; e os escravos Bento, José, Roque, Domingos, José (II), Joaquim, Luiz, Libério, Joaquim Moçambique, Inácio, Fortunato, Adão, Caterine Conga, Vitória, Rosa Carajé [índia], Florentina, Eva e Maria.
Interessante é observar que, quanto à cor, os mais novos eram quase todos crioulos, o que denota que a miscigenação já era avançada; além disso, havia uma escrava com nome francês, Caterine Conga; e Rosa Carajé era índia, sinal de que até essa época, a escravização indígena ainda existia. Dona Ana Maria Franco enviuvou em 1825 [três anos após o referido recenseamento], quando contava com 52 anos de idade e, mesmo riquíssima, desenvolveu problemas mentais, em virtude de tantos afazeres para cuidar. E necessitou ser curatelada pelo alferes Joaquim Gonçalves Valim e posteriormente por outro, até falecer, em 2 de junho de 1851, aos 78 anos.
Com dona Ana Maria Franco pode-se considerar que foi iniciada a primeira célula daquilo que faria surgir um povoado. E, de etapa em etapa, daria origem a São João da Boa Vista.

Foi o primeiro presidente da Câmara de São João, cargo que exerceu por muitos anos, até sua morte. Administrou a cidade por muitos anos. Foi também o primeiro Juiz de Paz e Curador de órfãos, a quem cabia zelar e cuidar das crianças sem pais.
FAMÍLIAS HISTÓRICAS
Orestes Blasi Júnior, promotor de justiça aposentado, traz no sobrenome a história de um comércio que já existe desde 1923 – a Casa Blasi. Mas tudo começou muito antes. “Meu avô Frederico veio para o Brasil em fins de 1888, fixando-se em Jaboticabal (SP). Transferiu-se para São João no fim do século XIX e, nos primeiros anos do século XX, iniciou suas atividades comerciais, associando-se aos sobrinhos Francisco e José Filardi, no armazém. Em 1910, já como único proprietário, fundou a Casa Blasi, com a diversificação dos produtos e expansão do comércio de materiais de construção”, contou.
O arquiteto e historiador Antônio Carlos Rodrigues Lorette revela que a família Cabral de Vasconcellos, por sua vez, é proveniente da Ilha de São Miguel dos Açores, território português muito importante por seu comércio e situação geográfica estratégica. “Eles já tinham a prática de comércio no local, tinham um certo dinheiro e eram praticamente todos aparentados. E essas famílias já tinham sido, digamos, imigrantes para o Brasil e até para nossa região, numa fase que foi a tentativa de colonização de Casa Branca, pelo Dom João VI, Príncipe regente na ocasião”, disse Lorette.
E acrescentou que, neste estímulo à imigração, essas famílias dos Açores entravam em contato com seus parentes – Pereira, Teles, Guimarães, Cabral de Vasconcellos, enfim, famílias cujos sobrenomes são bem conhecidos em São João, e lhes avisavam que as condições para comércio por aqui eram favoráveis. “A família Cabral de Vasconcellos é uma dessas que foram ‘convidadas’. Também a Manuel dos Santos Malheiros, que veio na mesma época, era aparentada, como um primo distante. E o Manuel dos Santos Malheiros, que é pai da Carolina Malheiros, veio para cá, casou-se com uma moça conterrânea e comprou a Fazenda São Pedro. É curioso porque a família Cabral de Vasconcellos vem ‘em bloco’. E eram comerciantes importantes na Ilha. Comercializavam tecidos para fazer roupas gigantescas, aquelas saias-balão, que gastam metros de fazendas de tecido”, descreveu.

O largo que ficava na ponta da rua das Flores, onde hoje está a Lojas Cem e o Terminal Urbano, abrigava um grande centro comercial da época e era ponto de parada dos tropeiros que passavam pela região. Produtores, vendedores, comerciantes e prestadores de serviço, se reuniam para negociações.
Lorette destaca que eles vieram de forma liberal, para tentar começar um negócio na cidade, ainda que a situação econômica dos Cabral de Vasconcellos, na Ilha de São Miguel, fosse ótima. “Por conhecer esses parentes e amigos já instalados na região, eles procuravam uma cidade que estivesse começando a despertar economicamente. E o café, o açúcar e a criação de gado suíno eram o foco da economia, na época. Inclusive, tinham uma quadra específica só para sepultamento da família, porque eles é que doaram o terreno para fazer o cemitério. E garantiram uma quadra, onde estão todos ali”, lembrou.
Os Cabral de Vasconcellos, como Lorette reforça, chegaram aqui e adquiriram terrenos para fazer a casa e o comércio, justamente no ponto mais comercial da São João d’antanho, que era nas atuais ruas Ademar de Barros e Hugo Sarmento, no antigo Mercado. “Era ali a parada onde os tropeiros estacionavam, antes de continuar viagem. Um largo, que ficava na ponta da rua das Flores, termo que geralmente está associado ao mercado de hortaliças. Pois a comida não era só os embutidos que eles levavam, tinha também a parte de verduras. E a família Cabral de Vasconcellos se concentrou exatamente nessa praça dos tropeiros. Comprou toda aquela quadra da Hugo Sarmento e da Ademar de Barros, até próximo do Banco do Brasil, para montar seus negócios, bem como a residência”.
Segundo Lorette, logo que os Cabral de Vasconcellos fizeram tal compra, Manuel dos Santos Malheiros, fazendeiro da Fazenda São Pedro, já possuía também a sua casa, aqui na cidade. “Manuel dos Santos Malheiros comprou um imóvel onde, hoje, está o Banco do Brasil. Era a ‘casa da cidade’ deles, de frente para a praça principal. E o Felipe Cabral de Vasconcellos, dessa família, era o mais importante desse bloco. Tem também o José Cabral de Vasconcellos, ou ‘Zé do Comércio’, irmão do Felipe. Todos eram abonados, vieram com muito dinheiro, pois já tinham comércio desenvolvido lá em Portugal. E Felipe casou-se com Maria, filha do Manuel dos Santos Malheiros, e foi morar naquela casa. Só que perdeu o primeiro filho e a mulher, no parto. Então a irmã, Carolina Malheiros, decidiu se casar com Felipe. Mas ela também estava muito doente, acabou sucumbindo e doou o patrimônio dela para a constituição da Santa Casa de Misericórdia, deixando Felipe viúvo novamente”.
O historiador completa que Felipe logo descobriu um cisto no pescoço e partiu para a Ilha de São Miguel, a fim de se tratar – lá, acabou por casar-se novamente, com a prima Lucina Raposo. “Eles vão ser pais do Henrique Cabral de Vasconcellos e da Chiquinha, que casou-se com o dr. Oscar Pirajá Martins e morou nessa mesma casa, posteriormente palacete da dona Lucina. Mas originalmente era uma casa com um comércio na frente”, observou.
Sobre ‘Zé do Comércio’, este buscava por propriedade, e adquiriu a fazenda Santa Rita das Areias, às margens do rio Jaguari, nas imediações da Ponte do Arco. “Os Cabral de Vasconcellos começam a vender tecidos, tiveram comércio de ferramentas agrícolas, são os primeiros a vender fogão de ferro e tinham secos e molhados. Eram as lojas que vendiam de tudo, desde embutidos, temperos, até arreios. Tiveram escravos, muitos escravos. E o ‘Zé do Comércio’ comprou uma propriedade agrícola porque queria produzir pinga, cachaça, no caso, a pinga Cabral”.
Lorette os considera os primeiros comerciantes fortes de São João, que alavancaram a cidade nesse sentido. “O ‘Zé do Comércio’ produzia a pinga por causa dos secos e molhados, para poder oferecê-la no estabelecimento. Comprava também as produções de pequenos proprietários, para fornecer cereais, como arroz, feijão, para fazer a cidade funcionar”, pontuou.
Outra família ilustre, sem dúvidas, é a dos Oliveira, que o historiador relata serem aparentados com os Andrade e os Azevedo. “Eles vêm de Baependi, no sul de Minas, e de Cristina, cidades muito próximas. E são proprietários rurais. Na verdade, os Azevedo e Oliveira são todos primos. E o tronco deles, além desse sobrenome, é Junqueira. Então a matriz deles era a fazenda do Favacho, dos Junqueira. Esses fazendeiros vêm de Cruzilha, de Baependi, São Tomé das Letras, em busca de terras aqui na nossa região, disponíveis para passar aos herdeiros, que costumavam ser muitos”.
De acordo com Lorette, o Joaquim José de Oliveira, o velho, pai do Joaquim José da estátua, era neto do padre Junqueira. “Mas o padre não podia ter filhos, então a mulher dele, quando teve os filhos, precisou casar com um major Oliveira e adotou este sobrenome. Os filhos não podiam ter o nome do pai verdadeiro, que era Junqueira. Essa ala dos Oliveira era Junqueira. Já o Joaquim José, o novo, nasceu em Baependi, em 1830, e era o mais velho dos irmãos. Eles vêm nessa época, para cá. Depois tem João Osório, o Ernesto de Oliveira, que é um dos caçulas; e mulheres, que vão se casar com membros das famílias Garcia da Costa e a Andrade, da qual pertence Teófilo Ribeiro de Andrade. A mãe dele era irmã do Joaquim José. Tudo família mesmo”, mencionou.
A referida família adquiriu, então, a fazenda Pratinha, onde está a nascente do Córrego do Prata, que deu origem ao nome Águas da Prata, e está situada em um ponto alto, próximo às fazendas Mamonal e Retiro do Alto. Lorette explica que a Retiro do Alto era de criação de gado caracu e o nome da propriedade é alusão ao retiro de leite. “E era dos Azevedo. Joaquim José [o velho’] chama esses parentes para cá e eles vão adquirindo propriedade. Este Joaquim José está sepultado na capela da fazenda Prata, que é de São Joaquim. Na lápide está ‘o velho’. O pai do Joaquim José [da estátua]”, justificou.
Para Joaquim José [o velho], a educação e a cultura eram tão primordiais que ele contratou um professor francês, tipo viajante, para que os filhos e sobrinhos tivessem a melhor instrução possível. “Esse professor francês era um liberal. Trazia a linha dos enciclopedistas, das teorias da Revolução Francesa e ensinava francês, porque eles tinham que ler livros em francês. Ernesto de Oliveira, Joaquim José, João Osório de Oliveira (pai do Christiano Osório) começaram a aprender as teorias liberais. Era uma cultura muito rara. Isso em 1830 ou 1840.
As mulheres também estudavam com esse professor, mesmo que antigamente, a mentalidade fosse do tipo ‘mulher não precisa, porque elas não são negociantes, é só saber alguma coisinha para passar para os filhos’. Mas para o Oliveira ‘velho’, isso era fundamental”, acentuou.

A estação ferroviária da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro (CMEF) de São João foi um forte polo para o desenvolvimento da cidade, por conta de transporte de cargas e de pessoas. A cidade cresceu à partir do largo da estação, que receberia o nome de Largo Ruy Barbosa.
Joaquim José, o filho, casou-se com Helena, que pertencia à família Junqueira e era sua parente, e o casal tem um único filho, o Joaquim Cândido de Oliveira. Por complicações no parto, Helena foi a óbito e Joaquim José contou com a ajuda dos irmãos para criar Joaquim Cândido. “Viúvo e com uma criança já crescida, ele arranjou um casamento, com uma moça mais nova, Donana Rezende Pio da Silva, de família de fazendeiros vinda de Rezende, no vale do Rio de Janeiro, e proprietários da fazenda Capivari, em Caldas (MG). Donana também tem uma educação diferenciada. Como o irmão caçula tinha que ir estudar no Rio de Janeiro, isso em meados de 1850, ela foi acompanhá-lo e teve sua formação por lá. Estudou inclusive com as princesas, as duas filhas do Dom Pedro II. E cultivou essa amizade, principalmente com a princesa Isabel, por anos, até à época do exílio. Sua formação foi lá no Palácio, junto com as princesas e Donana não era, nem nunca foi, esnobe”.
Todas essas qualidades encantaram Joaquim José e, como a admiração era mútua, eles se casaram. “Após o casamento, ele precisava de uma fazenda, pois queria começar vida nova. Não dava para ficar na propriedade dos pais porque ia ser dividida. E adquiriu a fazenda do tio, alferes Francisco de Oliveira (irmão do Joaquim José, ‘o velho’): a fazenda Cachoeira. Ali estava uma concentração de Azevedo, Oliveira, na estrada do Paradouro, do Desterro, então estava tudo entre parentes. Essa localidade foi fundada em 1836”.
O filho mais velho do casal foi Gabriel Pio da Silva Oliveira, seguido por Amadeu de Oliveira, Chiquita, Elias e Maria Ignez, conhecida por Tita.
Na fazenda Cachoeira, a família continuou criando porcos por um bom tempo e fazendo o transporte da mercadoria, bem como dos móveis que até hoje permanecem no ambiente. “O Joaquim José de Oliveira era uma pessoa que sabia fazer a concórdia, a conciliação. Isso fez com que fosse escolhido para ser vereador e juiz de paz. Como ele estava muito próximo da comunidade, passou a ser um benfeitor, a se preocupar com os pobres, com quem não estudava, e abriu uma escolinha também, como o pai fizera, no porão da Cachoeira, para a formação dos filhos, inclusive o Joaquim Cândido, fruto de seu primeiro casamento”.
O primogênito, posteriormente, foi enviado para o Culto à Ciência, colégio em Campinas, para concluir os estudos. “Era a única escola liberal, de tendência republicana, àquela época, como a família pretendia. E lá, Joaquim Cândido foi colega de Santos Dumont”.
Para o historiador, Joaquim José de Oliveira, homenageado com a estátua, na praça de mesmo nome, foi um pioneiro. Seu filho, Amadeu, acometido pela poliomielite na infância, foi para a Alemanha, tentar tratamento e terminar a formação como Engenheiro. “Quando voltou, abriu a Companhia de Eletricidade. Ele também foi pioneiro aqui em São João, no abastecimento de água e energia, criou toda uma estrutura, antes de morrer de tuberculose, em 1911. O Gabriel continuou como fazendeiro, mais ligado à terra”.
QUEM É ESSA TAL DONA GERTRUDES?
Uma das principais avenidas de São João da Boa Vista homenageia uma mulher cujo sobrenome não é revelado –conhecida apenas por dona Gertrudes. Afinal, quem foi essa personalidade?
Lorette lembra da polêmica que se formou, em meados de 1920, quando a referida via pública recebeu esse nome. “Era para ser [a avenida] Francisco Glicério, político que estava relacionado com os políticos daqui, muito amigo também do Joaquim José e do Ernesto de Oliveira. Mas, nessa ocasião, populares comentaram que essa avenida já tinha nome, todos conheciam como dona Gertrudes. Virou uma polêmica na Câmara, pois nem todos sabiam quem era essa mulher, que nem tinha sobrenome. Teófilo Ribeiro de Andrade, que era advogado, vereador e foi também o segundo deputado estadual por São João, tentou resolver esse impasse. Após pesquisar documentos, revelou que, ao contrário do que a população pensava, essa dona Gertrudes não era a esposa do Manuel dos Santos Malheiros, mas a Gertrudes Mathias Cintra”.
As famílias Cabral de Vasconcelos e dos Santos Malheiros queriam induzir que aquela avenida tinha o nome da matriarca, Gertrudes dos Santos. “Essa Gertrudes Mathias Cintra era casada com o Conrado de Albuquerque. Eles vieram de Amparo (SP) e foram donos do local onde é o Palmeiras. Quando ela e o marido, Conrado Marcondes de Albuquerque, que fora consultor e vereador na cidade de Amparo, vieram para São João, em 1890, a intenção era investir. Conrado abriu uma olaria e comprou essa propriedade [Palmeiras] de um médico que havia ido embora daqui. Já havia um chalé e ele queria investir nessas terras. Foi quando começou também a Vila Conrado”.
O historiador ainda recorda que a avenida João Osório, antigamente, se chamava Mathias Cintra, nome do irmão da dona Gertrudes, cuja família era muito rica. “E ali, eles fizeram o primeiro loteamento de São João, chamado Boa Vista, por ser o ponto mais alto da cidade. Seria uma espécie de ‘higienópolis’, um bairro higiênico. Esse loteamento foi feito para vender os terrenos, ganhar dinheiro. Mas precisava ter um cemitério. Por isso eles deram parte do lote para essa finalidade, bem como o terreno para a construção de uma Santa Casa. A Carolina Malheiros deu dinheiro para construir a Santa Casa e o terreno foi a dona Gertrudes, junto com o Conrado”.
Sobre o nome da avenida, Lorette faz um paralelo com a antiga moradora do Palmeiras e mãe do médico, com a dona Gertrudes, no tocante ao caráter. “O médico era muito rico, solteiro e morava com a mãe. Mudou-se daqui porque não aguentou a pressão, acusado de explorar a população cobrando alto por suas consultas. O Conrado de Albuquerque vê um potencial no imóvel e começa investir nessas construções. Até constrói a Maximina do lado. E, se por um lado, a mãe do doutor era muito mesquinha, não dava passagem para o gado ou para as tropas, a dona Gertrudes era o oposto. Muito bondosa, muito querida pelas crianças e por todos. Dessa forma, não demorou para a população utilizar o nome dela como ponto de referência, ao dar endereços para quem perguntava sobre alguma localização na cidade – ‘ah, é na avenida lá da dona Gertrudes!’, ‘é ali nas terras da dona Gertrudes, você passa ali na frente da dona Gertrudes’. Na década de 1910, eles voltaram para Amparo, e a própria Gertrudes não presenciou a homenagem. Eles venderam o imóvel para o João Osório, que era o banqueiro na época, e ele fez aquela reforma, virou um palacete, com cúpula e tudo. E o nome da avenida permaneceu dona Gertrudes, em alusão à bondade dela”.
LEGADO DESSAS FAMÍLIAS
Indagado sobre como o reflexo dessas famílias atinge a São João dos dias de hoje, Lorette avalia a tradicional pergunta que os sanjoanenses faziam ou fazem: ‘você é filho(a) de quem’?
“Quando falam de história, em São João, sempre se pensa que é uma questão administrativa, política, questão de heróis. Mas eu vejo como uma malha, uma rede. Se pensarmos bem, a história local é como as famílias se comportam, se organizam. Como é que elas vão trazendo as tradições, vão se firmando ou criando outras relações. Quando a gente tenta entender a evolução de uma cidade, temos que entender como foram essas relações e como elas podem frutificar. O que me assusta é que, hoje, essas relações já não são mais frequentes. Ninguém mais sabe. Quando uma pessoa vinha de fora, causava certa desconfiança. Hoje, isso é uma frase compreensível, pois eles tinham insegurança. Será que as nossas relações, que nos fortalecem, nos dão garantia de que seremos sobreviventes desse mundo, podem ser quebradas pelo desconhecido? Eu acho que a gente tem que perguntar, sim! Você é filho de quem? Mesmo que você fale que é um forasteiro, termo usado para designar quem é ‘de fora’. Pergunta-se ‘você é filho de quem’ como quem diz ‘eu quero começar uma conversa e descobrir algo para dar um start na conversa’. O que fortalece e faz sobreviver uma cidade são as relações. E o que garante a nossa vivência são as famílias. Não temos que ser uma cidade de estranhos. E, se somos estranhos, precisamos conquistar essas relações, além de tentar entender quais eram as relações antigas que existiam”.

A atual igreja foi construída sobre a antiga capela. No local, situava-se o largo da forca e também o pelourinho, que é uma coluna de pedra colocada em um lugar público, onde eram punidos e expostos os criminosos. Também realizava-se nas imediações a feira de escravos.
CONTRIBUIÇÃO DAS MÃOS NEGRAS
Fundada oficialmente em 1824, São João da Boa Vista foi edificada por mãos negras, visto que a escravidão no Brasil só seria abolida em 1888. Entretanto, no livro de Maria Leonor Alvarez Silva, há um fato que merece destaque e está relacionado à primeira família aqui registrada: um documento fornecido por um sacerdote pelo pagamento de duas missas, encomendadas por dona Ana Maria Franco de Oliveira, “por intenção de duas criancinhas, filhas de escravos, mortas em sua propriedade.” Tratava-se de um ato humanitário e de fraternidade cristã dessa rica fazendeira, numa época em que os próprios sacerdotes consideravam natural possuir escravos para o serviço de seus engenhos. O monsenhor João José Vieira Ramalho é o que apresenta maior número de escravos na região. Mesmo assim, deixou sua pequena fábrica de chapéus rústicos a um escravo que o servira durante muitos anos. E deu em testamento, liberdade ao seu mais fiel servidor.
A advogada Dylourdes Oliveira Juvêncio considera que o importante na construção da sociedade é que os primeiros bairros centrais, como o Rosário, próximo à ferrovia e Estação das Artes, era o barracão onde cumpria-se quarentena dos negros. “A contribuição maior da comunidade negra foram as construções do que hoje são os bairros centrais da cidade.
Primeiro no Rosário, durante a escravização, onde ficavam os negros que não iam para as fazendas. No pós abolição, quando as famílias negras, já constituídas, começaram a chegar na cidade, vinham para trabalhar na ferrovia, nas fazendas, e já ficavam ali. Com o arruamento e com o embranquecimento daquela população, eles vieram para o bairro do São Lázaro, onde o Coronel Cristiano Osório doou algumas terras para ex-escravizados deles. Inclusive no local onde há esse córrego, era um rio caudaloso, em que as negras lavavam roupa”, destacou, completando que o bairro do São Lázaro foi contribuição da comunidade negra.
A advogada acrescenta que, na sequência, os negros foram deslocados para o São Benedito e ajudaram no povoamento deste outro bairro central. “Saindo do São Benedito, foram para o Santo Antônio, o Bela Vista, Vila Conrado, que também acabou virando uma região central. Então, toda essa construção do centro da cidade tem contribuição da comunidade negra, que foram os primeiros moradores”.
Para Dylourdes, o aspecto em que a população negra mais contribuiu para a formação de nossa cidade é que esta comunidade sempre teve o dever de cuidado, principalmente porque, por força de lei, os negros não podiam estudar, nem tinham direito a terras. “As mulheres negras, as mães pretas trabalhavam na casa de família. Essa população que nós temos, de 60, 70 anos de idade foi cuidada pelas primeiras mulheres negras de São João. E os negros eram carroceiros, trabalhavam na sacaria, na ferrovia. Mas as mães pretas, sempre com esse dever de cuidado. E é assim até hoje. Elas aprenderam a cozinhar muitos tipos de comida e, quando começaram a estruturar a cidade, trabalhavam sempre como cozinheiras. Quem não se lembra da dona Dirce do Instituto, da dona Maria lá no Joaquim José, da Isa no Anésia? São as primeiras famílias e já vieram nesse cuidado, de cozinhar, porque cozinhar é uma forma de amar”, considerou.

Benedito Antonio Lourenço, o Dito Pito, um dos mais conhecidos nomes do movimento negro local. Ele e sua esposa realizavam benzimentos e confeccionavam produtos de curas e remédios a partir de animais e plantas.
E ressaltou que essa é a maior contribuição, cuidar do lar, enquanto as outras famílias tradicionais brancas construíam teoricamente, politicamente, estruturalmente a cidade.
Sobre os negros terem carregado São João nas costas, Dylourdes concorda e avalia que os negros não eram considerados humanos, mas eram eles que cuidavam dos filhos dos senhores, para que eles trabalhassem. “As negras na casa grande é que criavam os filhos das senhoras, dando amor e carinho. Além do dever de cuidado, a comunidade negra, por não poder estudar, e quando foi permitido, podia só até o 4º ano de grupo, foram autodidatas. Aprendendo e contribuindo com a sociedade. Os primeiros e grandes pedreiros e engenheiros eram negros. Eles construíam simplesmente pelo que os outros falavam. Como eu disse, os bairros, as igrejas foram construídas por mãos pretas. Esse cuidar fez com que a sociedade só se movimentasse porque a população preta estava aqui, do pós abolição e começo da República”.
Como destacou a advogada, foram mãos negras que enriqueceram os senhores de café, de engenho, contribuíram na lavoura, entre outras tarefas, até a chegada dos imigrantes. “A gente sempre carregou nas costas, sim, porque ajudou a construir literalmente tudo o que tem na cidade. E a gente carrega sem que as pessoas percebam, porque o chão de fábrica, até hoje, é negro; as cozinheiras de escolas, a maioria é negra; as lavadeiras, arrumadeiras etc são negras; o pessoal da limpeza urbana, os lixeiros, as varredoras, na sua grande maioria são negras; e quem traz essa tradição de religiosidade são negros. Então, sim, a gente carrega, até hoje, a sociedade nas costas”.
Nascida no bairro de São Benedito, Dylourdes se emocionou ao ler a história da doação de terra para a construção da Igreja, pelo português Manuel Cecílio, que era o dono da Vila Santa Cecília. “Quando eu tenho essa memória afetiva da minha infância, de ver congada, folia de Reis, quermesse de São Benedito ali na frente da igreja, tudo isso é contribuição dos negros. E não é contado, pois a história negra é oral, não é escrita. Mas quando pensamos nessa construção é que percebemos a grande contribuição da população negra para São João da Boa Vista. Eram escravos de padres, escravos de fazenda. Todos os avós, bisavós têm a contribuição dos negros no sucesso de suas fazendas, que vem até hoje. Também da comunidade negra para a cidade é a cultura, pois a cultura preta, musicalmente falando, é muito rica. O samba, o choro, o maxixe passam pelos nossos tambores. A musicalidade brasileira é muito preta, tanto é que, em 2024, se comemora os 50 anos de Hip Hop. E São João também tem essa colaboração da população preta, na área da cultura”.
Na visão de Dylourdes, o mais relevante é lembrar que essa população chegou aqui antes da abolição, e perpassa a criação da cidade, desde sempre. “E pós abolição nós também recebemos famílias oriundas de outras partes, o que enriqueceu muito mais a cidade. Como sanjoanense de origem, eu fico muito feliz e agradecida de poder falar um pouco da história da comunidade negra na edificação da nossa cidade. São 200 anos de fundação e a gente está aqui há 200 anos”, concluiu.
ACOLHIDA AOS IMIGRANTES E SEUS COMÉRCIOS
“Bebeu água do Jaguari, não sai mais daqui” é um antigo bordão que perdura até hoje e pode ser aplicado aos imigrantes, pessoas que vieram de outras partes do mundo e imprimiram seus nomes em diversos segmentos de São João da Boa Vista. Na primeira parte desta matéria, foram citados alguns portugueses. O primeiro imigrante descrito no livro História de São João da Boa Vista, porém, é um francês, sócio do padre João José Vieira Ramalho, na primeira indústria experimentada em nosso município, uma fábrica de chapéus, em 1844.
Antônio Carlos Rodrigues Lorette menciona que a imigração europeia, na cidade, começou com os teutos — suecos, dinamarqueses e alemães, que vêm para a construção do ramal férreo, dentre eles, Nicolau Rehder. “Não vêm só colonos, para trabalhar na lavoura. Vêm também profissionais que conheciam esses trabalhos, além de sapateiros, modistas, comerciantes. Tem o Kielander, e eles vão diversificar essa cultura também. Depois vieram os italianos, como Blasi; os espanhóis, famílias como Peres; e no início do século XX, os sírios libaneses, que chegam junto com a imigração espanhola”.
O historiador observa que os espanhóis se juntam aos sírio libaneses e concentram seus comércios na ‘boca’ da avenida Dona Gertrudes. “Os libaneses e sírios vêm ricos do Líbano, de Beirute, e já vêm com comércio, iniciado como mascate. Eles vendiam tecidos, variedades nas roças e depois fixaram-se aqui na ‘boca’ da avenida Dona Gertrudes. Os Michinhote, os Zogbi, os Bittar, o José Caiati, o Atalla Murr, eram os que tinham comércio ali. Perto do Theatro estavam os Antakly, que eram do Líbano e o Adib Nagib, que tiveram a Chevrolet. O Sckayer que tinha uma de tecido. Famílias italianas, então, têm várias: Padovan, Budri, Dattoli, Giannelli, Donni e muitas mais. Outro ponto importante é que a primeira loja em São João é considerada de um imigrante italiano. Eles produziam colares feitos de papel machê, bem coloridos, isso em 1860. E é uma família italiana que se instalou antes da imigração massiva”.
Algumas lojas ainda permanecem em pleno funcionamento, nas mãos de herdeiros, que as fazem progredir sempre – como as relojoarias Dattoli e Donni, a Kiberia do Jacob, a Loja do Joãozinho, a sorveteria Milk Mony e a Casa Blasi. “Eu acho que o comércio, hoje, está um pouco mais disperso. Ninguém sabe muito da origem destes estabelecimentos. Talvez alguns prédios mais simbólicos, como a Casa Blasi, fundada em 1923, em sociedade com o Filardi, outro italiano, seja um exemplo. Era a casa de secos e molhados Filardi e Blasi. Mas muita gente muda de profissão, os herdeiros nem sempre continuam”, finalizou Lorette.

FUNDADA EM 1911
Com a nomenclatura inicial de Associação Comercial e Industrial (ACI), esta entidade comemorou em 2023 um marco importante da história empresarial da cidade: 80 anos de reativação. Para registro histórico, desde 2003, ela é Associação Comercial e Empresarial (ACE). Fundada originalmente em 01 de janeiro de 1911, com o objetivo de fortalecer a economia local e representar os interesses dos comerciantes e empresários da região, devido aos desafios da época, em decorrência da I Guerra Mundial, a entidade ficou inativa por um período.
Durante o intervalo, os negócios da cidade seguiram em frente, mas a ausência de uma entidade que representasse o comércio local deixou uma lacuna na defesa dos interesses empresariais, e na promoção do desenvolvimento econômico. “Foi graças ao empenho e à visão estratégica de um grupo de valorosos e comprometidos comerciantes de secos e molhados, que a ACE São João foi reativada em 13 de junho de 1943”, acrescentou o presidente, Cândido Alex Pandini.
Ele destaca que esses empreendedores perceberam a importância de unir forças para enfrentar os desafios comuns, compartilhar conhecimento e experiências, “além de promover o crescimento conjunto dos negócios em São João da Boa Vista”. A reativação, segundo a ACE, aconteceu com o intuito de reivindicar, em conjunto, maior destinação de alimentos como café, milho e soja para São João e, também visando melhorar as condições no fornecimento de energia elétrica da cidade. “Diversos telegramas foram enviados diretamente ao então presidente da República Getúlio Vargas, para que este ajudasse na resolução destes e de outros problemas que o município enfrentava”, informou Pandini.
Atualmente, Associação Comercial é uma força viva do comércio sanjoanense, promovendo ações de incentivo, divulgação, e valorização da economia local. A entidade também é responsável pela realização de eventos para o varejo, festivais gastronômicos, cursos de capacitação, e pela Parada de Natal.
FABRICANDO A HISTÓRIA
Durante seus 200 anos de existência, São João da Boa Vista contou com diversos personagens para desenvolver sua economia, como produtores rurais, comerciantes, donos de indústrias, entre outros segmentos. Aqui, vamos fazer uma viagem pelas principais indústrias da história sanjoanense.
Segundo os historiadores, desde o início da formação do município, a indústria já marcava presença. Pelos dados disponíveis, Monsenhor João José Vieira Ramalho, apontado como o fundador de São João da Boa Vista, foi o primeiro a ingressar no ramo industrial. Ao chegar ao município, Monsenhor Ramalho investiu em plantações em várias fazendas, principalmente de cana de açúcar.
No entanto, por uma questão de tipo de solo, ele resolveu ampliar a produção e abriu uma fábrica de chapéu. É o que explica o historiador e arquiteto, Antônio Carlos Lorette. “Então, no território plano, do outro lado do Jaguari, ele (Monsenhor Ramalho) vai montar essas fazendas. Fazenda da Glória, Fazenda São Pedro, a Fazenda dos Pinheiros. Então, ele pega e monta essas fazendas e depois oferece para proprietários ricos que pudessem investir e tocar. E, na montanha, aí não dá para você [plantar cana de açúcar], porque você teria uma cultura de subsistência, alguma coisa muito mais específica, mais caseira. E aí, ele monta uma fábrica de chapéu, ali próximo ao Rosário”, contou.

Em 9 de julho de 1932, começava uma luta entre os paulistas e os soldados do governo de Getúlio Vargas que marcaria a história do Brasil, e os municípios de Águas da Prata e São João da Boa Vista ainda colecionam muitas lembranças e personagens dessa época. Os primeiros enfrentamentos foram registradas no bairro da Cascata.
“É uma potência, não é simples fazer chapéu nessa época. Eles faziam de couro de lebre. Então, você teria que criar lebre ou, se não, comprar pele. E oferecer chapéus muito bem feitos para você produzir. Então, eu acredito que não deva ser uma fábrica muito simples”, complementou. No livro Cem anos de Indústria em São João da Boa Vista, escrito pelos pesquisadores Jaime Splettstoser Júnior, Maria Izabel Ferezin Sares e Sérgio Venício Dragão, consta que a fábrica de chapéus foi criada em 1844. Quando faleceu, Monsenhor João Ramalho a deixou em testamento a um de seus escravos.
OLARIAS
De acordo com o livro Cem anos de Indústria em São João da Boa Vista, na década de 1870, as grandes fazendas da região começaram a construir olarias para a produção de telhas, tijolos e placas para terrenos de café. Segundo Antônio Carlos Lorette, até 1883, as casas na região eram construídas de forma artesanal, com pau-a-pique e taipa. Era um processo mais lento, dependendo de pessoas que, em muitas ocasiões, vinham de outras cidades para fazer as construções. Com a chegada da linha férrea de Poços de Caldas, que passa por São João da Boa Vista, foi sentido o desejo de acelerar o processo, uma vez que o transporte de materiais ficou mais fácil. “Eles [construtores] começam a falar: ‘a gente tem que ter uma técnica mais rápida, mais prática. se eu não tiver madeira para você fazer, então você não faz a casa. Se eu não tiver barro suficiente, então você não faz a casa. Então, vamos otimizar isso.’ Então, começaram a produzir tijolos, alvenaria de tijolos”.
Com a nova forma de construção, operários de outros locais vinham a São João da Boa Vista para executar as obras. Inclusive imigrantes de vários países, principalmente alemães e italianos, vinham para a cidade. E, além dos tijolos, as olarias confeccionavam telhas, peças de cerâmica e vasilhas. O livro escrito pelos autores sanjoanenses traz o nome de alguns oleiros que estavam em atividade no final do século XIX. “No Almanach do Estado de São Paulo para 1890 constavam os seguintes oleiros em São João da Boa Vista: André Filardi, Antonio Ramos, Nicolau Rehder, Theodoro Antonio Baptista. No Almanach de São João da Boa Vista para 1901 de Antonio Gomes Martins constavam os oleiros: Antonio Silvério dos Santos, André Filardi, Antonio Adriano Alvarez, Eduardo Pires Goulardins, Dr Júlio P. de Freitas, José Dias de Carvalho e Maximiniano Nascimento”, relata a obra.
FÁBRICAS DE CERVEJA
Em 1894, o alemão nascido na Rússia, Daniel Rickheim, fundou uma fábrica de cerveja, em um prédio localizado na rua Saldanha Marinho, que existe hoje.
Anos depois, a fábrica passou a ser comandada pelo filho de Rickheim, Carlos, até a época da Segunda Guerra Mundial, quando foi fechada por conta da dificuldades na importação da cevada que vinha da Alemanha. Além de cerveja preta, a fábrica de Daniel Rickheim produzia um refrigerante.“(…) a fábrica produzia a gasosa marca Sport, que era embalada em uma garrafinha importada na Inglaterra e que possuía em seu gargalo um interessante dispositivo contendo uma bolinha de vidro para impedir a saída do gás. Para liberar o refrigerante pressionava-se a bolinha com o polegar”, descreve o livro escrito pelos sanjoanenses. Em 1900, o também alemão Emílio Weiss funda outra fábrica de cerveja em São João da Boa Vista.
Em 1901, existiam ainda outros três fabricantes da bebida: Angelo Polachi, José Dias Paschoal e Thomazo Bitello Também há registro da fábrica do italiano Antonio Rubbo. Mais adiante, em 1924, o italiano Cosimo Nago abriu a fábrica Ypiranga na rua Quintino Bocayuva (hoje, Guiomar Novaes) para a produção de cerveja, gasosas e licores.
FÁBRICA DE MEIAS SANTA LEONOR
A partir da década de 20, filhos de fazendeiros, em contato com imigrantes, buscavam diversificar ainda mais os produtos fabricados. Esses jovens se uniram e abriram indústrias e uma das que teve destaque foi a fábrica de meias Santa Leonor. Eles aproveitaram a moda da época – as meias de seda eram muito utilizadas pelas mulheres – e investiram no ramo. “Era moda na época, né? As mulheres usavam [as meias]. A saia acabava subindo (…) e aí elas tinham de usar meia. E as meias tinham de ser de seda porque tinha uma certa elasticidade e elas ficavam brilhantes, dando uma sensação de unificar as cores. (…) E o nome Santa Leonor, porque [Leonor] era a mãe de um dos sócios, que era o Zé Poeta, filho do Joaquim Cândido de Oliveira. Ele era o maior cotista dessa fábrica”, contou Lorette. Segundo o livro ‘Cem anos de indústria em São João da Boa Vista’, a fábrica foi fundada em 1920 por José de Azevedo Oliveira, conhecido como Zé Poeta.
O estabelecimento tinha máquinas vindas dos Estados Unidos e a seda utilizada era importada da Inglaterra e da Itália. Em 1923, mudou a razão social para E. Lansac & Cia e contava com 50 operários, três mecânicos, três enformadores e dois tintureiros, que produziam 1500 dúzias de pares de meia mensalmente”. “Possuía representantes no Rio, São Paulo e Santos. Em um artigo pulicado em 1924 no jornal Fanfulla de São Paulo, a Fábrica de Meias Santa Leonor era elogiada pela invenção de um funcionário, Sr. Giovanni Bonado, de um simples dispositivo que permitia o instantâneo desligamento de todas as máquinas em caso de acidente”, afirma o livro.
HARMÔNICAS SARTORELLO
Seguindo nessa linha de diversificação de produtos, veio a fábrica de harmônicas (sanfonas) Sartorello. O italiano João Sartorello já possuía desde 1890, na rua Saldanha Marinho, uma loja de ferragens e importava sanfonas da famosa marca Dalapé. Após vários anos, decidiu montar sua própria indústria. “Com auxílio de seu funcionário, Sr. José Primola, [João Sartorello] desmontou uma sanfona e começou a fabricar modelos similares. No início as gaitinhas que compunham as sanfonas ainda eram importadas, mas com muita criatividade, o Sr. José Prímola desenhou uma máquina para produzi-las também aqui”, narra a obra dos pesquisadores sanjoanenses.
A qualidade das harmônicas produzidas era tão alta que rendeu premiações à fábrica Sartorello: Medalha de Ouro e Diploma de Honra pelo Instituto Agrícola Brasileiro, do Rio de Janeiro; Grande Prêmio e Medalha de Ouro pela 5ª Feira de Amostras de São Paulo e Medalha de Ouro de Primeira Classe, pela Academie des Siences Lettres et Beaux Arts, de Paris. “As sanfonas eram produzidas com material de primeiríssimia qualidade, caprichosamente trabalhadas e afinadas à mão (…) A parte mecânica era perfeita, toda em metal ou alumínio, para evitar ferrugem. As sanfonas eram vendidas em todo o Brasil e nos países vizinhos”, pontua o livro.

São João transformou-se em um polo têxtil, com a produção de camisas (1901), meias (1920), lenços (1924), fábrica de tecidos (1926) e tecelagem de seda; tendo sido a empresa Fiatece (foto) a primeira grande indústria da cidade.
Em dezembro de 1949, a fábrica foi atingida pela tromba d’água e pela enchente que ocorreram em São João da Boa Vista. Isso porque ela ficava às margens do córrego São João, onde atualmente está a sede do Rosário Futebol Clube. Em abril de 1955, um incêndio destruiu o maquinário. Um outro terreno foi adquirido, onde hoje em dia fica o Sempre Vale Supermercados, mas as sanfonas caíram em desuso e a fábrica encerrou as atividades na década de 60.
SÃO JOÃO FIATECE
Esta indústria foi fundada em 1939 por Antônio Castelo Branco e Marcelo Castelo Branco. No mesmo ano, houve um desabamento do prédio que estava em construção por conta da chuva. Ninguém se feriu gravemente. Com isso, a fábrica foi inaugurada em 1941. No início, de acordo com o livro Cem anos de indústria em São João da Boa Vista, “a fiação contava com 2300 fusos e a tecelagem com 96 teares, seções de tinturaria e acabamento. A produção mensal era 20 mil quilos de fios e 120 mil metros de tecidos, tais como brins, zefires e riscados, contando com 140 operários”. Quando o Brasil entrou na 2ª Guerra Mundial, a Fiatece foi a vencedora de uma concorrência aberta pela Organização das Nações Unidas (ONU) para fornecer tecidos que seriam utilizados em roupas destinadas ao socorro dos refugiados dos conflitos.
Nessa época, a jornada de trabalho subiu de 8 para 16 horas e o número de funcionários passou de 700. “Numa época em que as leis trabalhistas ainda engatinhavam no Brasil, os operários da Fiatece tinham grandes benefícios, excelentes salários, além de férias coletivas duas vezes por ano. Nessas ocasiões, cada operário recebia 75 metros de tecido, a escolher, para vestir a família”, conta o livro. “E quem trabalhava mais nessa fábrica eram as mulheres, porque elas tinham os dedos fininhos para mexer nos teares, passar os fios. Então eles julgavam que as crianças e as mulheres eram melhores para trabalhar com tecelagem. (…) Então, o primeiro trabalho das mulheres fora de casa foi na Fiatece e separar café nos ‘Nogueira’, aqui na rua Guiomar Noaves. (…) Só que a mão de obra infantil torna-se proibida nessa época e eles ficam só com as mulheres”, relata o arquiteto e historiador, Antônio Carlos Lorette.
Tecidos da Fiatece foram utilizados no figurino do filme brasileiro Entrei de Gaiato, lançado em 1959, e que contou com a atuação de Dercy Gonçalves, Chico Anysio, entre outros.
Em 1953, a Fiatece foi vendida para um grupo da Suíça comandado por Hugo Walter Siegmund. Em 1970, passou a ser administrada pelo Sr. Walther Reinhold. Mas nessa época, a concorrência estava alta e a fábrica não acompanhava a evolução da tecnologia. Em 1984, a fábrica encerra suas atividades.