Conheça a história da Orquestra Brasileira Inclusiva, a primeira no país formada por PcD

POR NICKOLAS SANTOS

A inclusão é um dos temas mais discutidos nos dias atuais, sobretudo quando se fala das pessoas com deficiência (PcD). Entende-se por inclusão, o processo de garantir que todas as pessoas sejam tratadas com igualdade, independentemente das suas características individuais.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 18,6 milhões de pessoas de 2 anos de idade ou mais no país têm algum tipo de deficiência. No terceiro trimestre de 2022, a taxa de analfabetismo para as pessoas com deficiência foi de 19,5%, enquanto entre as pessoas sem deficiência essa taxa foi de 4,1%. Apenas 25,6% dos PcD tinham concluído pelo menos o Ensino Médio, enquanto 57,3% das pessoas sem deficiência tinham esse nível de instrução. Esses dados demonstram que ainda há desafios na inclusão.
A música vai além de proporcionar um melhor desenvolvimento motor de quem dança. Ela anima, acalma, concentra e estimula o cérebro. O mesmo ocorre com as pessoas com deficiência intelectual, dando oportunidade de terem experiências multissensoriais importantes para o desenvolvimento. Além de divertir, as atividades artísticas, como dança, música, pintura e desenho, são modos de incentivar as aptidões e competências de independência, raciocínio, pensamento crítico e coordenação.

As pessoas com deficiência intelectual podem ser inseridas de diversas maneiras no contexto musical, seja em escolas especializadas, no ambiente familiar, ou em até em grpos específicos, com a produção de ambientes onde todos possam participar de maneira efetiva e consistente. A música é capaz de auxiliar e reforçar diversos sentidos como a criatividade, disciplina, enriquecimento cultural, memória, linguagem, e estimulação do corpo e da mente.

As pessoas reagem às experiências musicais exatamente da mesma forma que as pessoas sem deficiência. A música é de grande importância para as pessoas com deficiência, pois pode amenizar ou até resolver suas dificuldades, como as de expressão, comunicação, socialização e motora, quando estas existem. A dificuldade em alguma das áreas sensorial, emocional e/ou intelectual prejudica as outras áreas, pois estão todas interligadas. A melhor maneira de desenvolvimento é integrar todas as áreas e a música oferece experiências que estimulam todas elas ao mesmo tempo, desenvolvendo assim mente, corpo e emoção e ampliando os limites físicos, sociais ou mentais que a pessoa possui.

A música é uma forma de comunicação não verbal, trazendo assim uma gama de possibilidades para uma pessoa com dificuldades de expressão e comunicação, permitindo o estabelecimento ou restabelecimento de contato social sem a fala. E para contribuir com essa missão, São João da Boa Vista tem uma iniciativa pioneira: a Orquestra Brasileira Inclusiva (OBI), a primeira no país formada por pessoas com deficiência. Criada em 2017, a orquestra foi uma ideia do músico e maestro Carlos Henrique Toni. Ele já atuava no meio musical desde 2005, até que um grupo de mães de alunos e amigos envolvidos na causa da inclusão, sugeriram que fosse criado um espaço para pessoas com deficiência, promovendo interação social e desenvolvimento artístico. “Eu trabalho com inclusão há pelo menos 10 anos. Comecei a trabalhar na APAE de Aguaí e passei a desenvolver trabalho de música, com fanfarra, musicalização, banda de pop rock. No meio do processo, percebi que esses alunos poderiam aprender muito mais. (…) e como eu venho de estudo de conservatório, eu sempre tive o sonho de reger uma orquestra. Então consegui desenvolver esse projeto”, relatou Toni.

PARTICIPANTES

Atualmente, a Orquestra Brasileira Inclusiva é formada por 16 alunos, conduzidos por 11 músicos profissionais sem deficiência, totalizando 27 integrantes. Podem participar pessoas a partir de 9 anos de idade e que tenham Autismo, Síndrome de Down ou algum outro tipo de deficiência. O maestro Toni relata que muitos profissionais da saúde indicam a orquestra para pacientes. E para participar é simples. “É só entrar em contato pelo Instagram, que é @orquestrabrasileirainc, e falar com a gente. Não é muito burocrático, não (…) E não é necessário ter o instrumento, não”, disse.

Na OBI há instrumentos de percussão, cordas e sopro. Os ensaios acontecem de forma esporádica, geralmente antecedendo apresentações. No entanto, durante todo o ano, os integrantes fazem aulas dos instrumentos da orquestra com o maestro Toni. As atividades acontecem às quartas-feiras, das 8h às 11h e das 13h às 17h, no estúdio particular do maestro.

ADAPTAÇÃO

O Maestro Toni explica que o ineditismo da Orquestra se dá, também, porque as músicas e os instrumentos são adaptados para a realidade de cada integrante. Por isso, nas apresentações da OBI, o compasso e o ritmo das músicas tocadas são diferentes do que ouvimos comumente. “A orquestra trabalha em um outro tempo musical. A gente tem o tempo do compasso tradicional, que é o tempo da música normal, e a gente tem o tempo dos nossos alunos, que eles aprendem um pouco diferente (…) Então o trabalho se constitui como inédito, porque a gente trabalha com uma linguagem diferente, uma estética diferente”, ressaltou.


“Sou eu que adapto os instrumentos. Coloco adesivo de cor, para poder ler as notas (…) Tem a metodologia em braile, que eu comecei a desenvolver agora para piano e para violão. Para poder adaptar esses instrumentos e entender melhor o mundo deles [integrantes], eu estudei bastante neurociência”, completou.

DESENVOLVIMENTO HUMANO

Estar em contato com os integrantes da orquestra foi uma forma não só de realizar o sonho de ser maestro, mas contribui para o desenvolvimento humano de Carlos Henrique Toni. “Eu consegui desenvolver muito da parte humana das crianças, das mães, dos músicos que trabalham com a gente, mas principalmente a minha parte humana. Por isso eu fico muito feliz e grato (…) Eu consigo me realizar nesses dois sentidos, tanto humano, quanto artístico”, destacou.

E a Orquestra Brasileira Inclusiva faz a diferença na vida dos integrantes e de suas famílias. Fernanda Rocha Roxo e sua irmã, Fabiana Rocha Roxo, fazem parte da OBI desde o início. Elas têm Transtorno do Espectro Autista (TEA), apresentando alterações comportamentais, na comunicação e na linguagem. Para as duas, participar da Orquestra é uma oportunidade de interagir socialmente e trazer um olhar positivo da sociedade sobre pessoas com TEA.
“Nós sentimos que estamos produzindo arte e cultura e fazendo parte de algo muito importante para nós e para o público. Fazer parte desta orquestra é tudo, pois ali, através da execução da música, nos sentimos conectadas ao contexto todo”, disse Fernanda. “E somos aplaudidas, tocamos o coração das pessoas, que veem o que podemos fazer, e param de olhar pra nós só com sentimentos negativos“, acrescentou Fabiana.

Joseane Rocha Roxo é mãe das duas integrantes e destaca a diferença que a orquestra faz na sua vida e na de suas filhas. “A Orquestra Brasileira Inclusiva representa a verdadeira oportunidade de ver minhas filhas e os demais integrantes sendo pessoas realizadas com o que fazem, e também receberem um lugar oficial no mundo social, reconhecimento de seus dons, talentos e esforços por estarem em um palco (…) pois se produz cultura com este movimento de naturalizar as diferenças e a diversidade de pessoas”, afirmou.

SEMANA GUIOMAR NOVAES

Em 2022 e em 2023, a OBI se apresentou na Semana Guiomar Novaes, um dos principais eventos culturais de São João da Boa Vista. Na primeira vez, o grupo apresentou um tributo à renomada pianista. E agora, em setembro de 2023, subiu ao palco do Theatro Municipal para apresentar um concerto. “Foi muito satisfatória a repercussão, tanto do pessoal que foi assistir lá, ao vivo, como o pessoal que assistiu pelos canais de comunicação (…) É uma das principais semanas de música erudita do país. Então é um fato que nos traz muito orgulho”, disse Maestro Toni.

Participar da Semana Guiomar Novaes foi uma honra para nós, sentimos que somos importantes e consideradas especiais. Quando fomos convidadas pelo Departamento de Cultura, vimos que eles nos consideram realmente importantes e capazes de produzir cultura, trazer público e nós arrasamos na apresentação”, exclamou Fernanda Rocha Roxo.“Assim vamos provocando mudanças nas pessoas, quando olham para a nossa deficiência, e não mais sentem pena ou ficam sem saber o que fazer, ou falar da gente. Pois ali ouvimos que somos lindas, que a apresentação foi linda, e aí ficamos empoderadas”, finalizou Fabiana.