Por Clovis Vieira
Theatro Municipal de São João da Boa Vista, em algum momento dos anos 2000. Plateia recheada de fãs e amigos. No palco, a Família Assad termina uma canção e os aplausos do público preenchem aquele espaço com uma vibração indescritível. Neste momento, emocionada, a matriarca Dona Ica volta em pensamento ao ano de 1945. Quando ainda era apenas a Angelina, de 14 anos, assistia com o namoradinho a um filme nesse mesmo Theatro Municipal, que funcionava como cinema.
Terminado o filme, as luzes se acendem e o jovem casal desce do balcão para o piso térreo. Neste momento, os olhos dela descobrem o olhar do turquinho Jorge, buscando pelo seu olhar, na parte de baixo da plateia. Instante mágico, que informa aos dois com quem eles viveriam o restante de suas vidas.
CONHAQUE
Aos poucos, durante o namoro, a jovem apaixonada foi descobrindo que a família do Jorge tinha um armazém na Avenida Dona Gertrudes, que ele era jogador ‘profissional’ de sinuca e que não tinha outro emprego. O dinheiro que o namorado ganhava vinha, mesmo, da sua habilidade sobre o pano verde.
“Logo no começo, ele me falou: ‘Quem me namorar, não vai ao Carnaval’”, conta dona Ica. “E faltava pouco tempo para acontecer o baile, eu até já tinha alugado uma fantasia!”, revela numa risada. E, desafiando essa regra do novo namorado, ela vai ao baile carnavalesco do Palmeiras FC, com as amigas.
Corria a festa e, de repente, no meio da noite, houve uma pane na iluminação, deixando o clube na penumbra.
“Os rapazes começaram a acender palitos de fósforos, para clarear um pouco o salão”, ela se lembra. Foi quando Angélica viu uma dessas luzes vindo em sua direção: “Era ele!”, confirma surpresa.
Diante da namorada, Jorge fala:
“Olha aqui, eu não bebo, mas foi preciso tomar uma dose de conhaque para entrar aqui, nessa porcaria”– e Dona Ica ri da lembrança desse momento especial. “Ele foi atrás de mim, né?”, diz orgulhosa. Sim, Jorge foi atrás dela e ficou ao seu lado pelos 64 anos seguintes.
Ela também se lembra de que, embora ele quisesse viver apenas do jogo de sinuca, houve um momento em que a vida exigiu mais dele. Amigo de um antigo relojoeiro, ele aprendeu a consertar despertadores.
“Quando nós nos casamos, ele logo abriu uma relojoaria no largo do Palmeiras. Mas ele ainda não sabia consertar relógios de pulso, só despertador!”– e cai na risada. O primeiro relógio que entrou na loja para ele consertar foi um cronógrafo, uma espécie de cronômetro. Foi o sanjoanense Arlindo Bianchi quem lhe passou as dicas para ele se tornar um relojoeiro dos melhores que a cidade já teve.
BANDOLIM
Dono de uma personalidade amorosa e, ao mesmo tempo, firme diante do que esperava das pessoas, Jorge Assad deixa sua marca em cada pessoa que cruza sua vida. Revelou-se persistente, autoconfiante, talentoso, intuitivo e um verdadeiro descobridor de novos talentos musicais, sejam eles seus alunos ou — como é sabido — os próprios filhos, a quem transformou em ícones mundiais do violão.
“Quando o procurei pela primeira vez para aprender, foi no ano de 2003. Eu tinha 13 anos de idade”, conta o músico Micael Chaves. “Fui até sua casa, ainda no Bairro Santo André, aqui em São João. Era noite, eu cheguei com um violão nas costas, ele estava cozinhando a janta e tinha um pano de prato jogado no ombro!” O jovem Micael é considerado o seu principal pupilo, a quem ‘seu’ Jorge ensinou tudo o que sabia de violão e bandolim, com carinho e pulso firme. Logo na primeira aula, num domingo, o bandolim que Jorge Assad tocava nas noites foi apresentado ao aluno, que não conhecia o instrumento.
“Ele me falou que ensinava choro no violão e nesse bandolim”.O músico teria dito ao jovem que precisava de alguém para tocar bandolim, “porque eu estou muito velho e quero que você aprenda também, para não deixar o choro morrer, aqui na cidade”. Depois desta primeira aula, Micael frequentou diariamente a casa do professor: “Eu morava lá, praticamente!” Emocional, envolvente, dedicado, interessado na aprendizagem do aluno, são qualidades que Micael destaca no seu mestre.
Quase como um pai para esse seu pupilo. Além das lições de música, o professor apresentou importantes valores morais ao jovem. Entre eles, a honestidade, humildade e a sinceridade têm lugar de destaque.
“E, também a persistência em realizar aquilo em que se acredita, em ir até o fim para realizar o que se deseja”. O jovem violonista se lembra da frase do professor:
“Se você quer ser um músico, então vai até o fim, sem desistir”. Esse bandolim, que ele tocava, está com Micael. Ficou como herança para ele, depois da sua morte.
PARTITURAS
Apesar de ter aprendido sozinho a tocar bandolim e de não ler partituras fluentemente, Jorge Assad ganhou fama de ser um excelente professor de música. Durante alguns anos, lecionou violão na Escola Municipal de Música, convidado pela então diretora de Cultura, Isabel Sibin, convivendo ali com outros músicos.
“Quando eu comecei a lecionar na Escola, em 1995, o ‘seu’ Jorginho já estava lá”, conta o professor de música, Henrique Borges. De acordo com ele, foi um tempo bom de convivência: “Ter um professor como ele, naquele local, eu considero muito interessante, até pela bagagem musical que ele tinha e o que ele já havia feito com o talento dos próprios filhos”.
Nesse tempo, Henrique estava iniciando sua carreira como orientador de instrumentos de sopro junto a jovens alunos.
“Era sempre um prazer muito grande aprender muitas coisas com ele, receber seu apoio, trocar informações e ideias. ‘Seu’ Jorginho estava sempre me emprestando umas partituras para chorinho”, diz Henrique.
Ele se lembra, também, de que o mestre era autodidata e para sua turma de estudantes ele não utilizava partituras: ensinava, mostrava os acordes no violão “e ia transformando isso em música, o que ficava bem interessante para seus alunos”. Nos finais de ano, a Escola de Música sempre promovia apresentações abertas ao público e,cada professor, em sua área musical, mostrava o progresso de sua ‘turminha’.
“Ele gostava muito de lecionar na Escola de Música”, confirma Dona Ica. “E aqueles alunos que se sobressaiam nos estudos, ele levava pra minha casa para ensinar melhor ainda”. Quando um aluno era bom mesmo, Jorge o destacava para acompanhá-lo nas apresentações em restaurantes e pizzarias, à noite.
INFLUÊNCIA
“Comecei a fazer aulas com o seu Jorge com 13 anos de idade”, relembra Josiane Gonçalves, hoje professora de violão no Conservatório de Tatuí e educadora musical no Projeto Guri, da região de Sorocaba. “Ele lecionava numa casa na esquina da Avenida João Osório. As aulas não tinham um horário marcado, os alunos iam chegando e sentando nos bancos em volta da sala”. “Jorge Assad passava aluno por aluno”, ela se lembra. “Quando um deles já conseguia tocar, ele mostrava esse progresso para os demais e os motivava a estudar cada vez mais. A experiência musical dessa época foi engrandecedora”. Ela recorda: “De vez em quando, juntavam-se ao seu Jorge o Maestro Mazzi e Dulcelei Aleixo, com a sanfona — esse era o momento em que eles apresentavam algumas músicas para os alunos, falavam dos compositores, contavam suas histórias musicais”.Atualmente, Josiane também faz parte de dois grupos: o Quarteto Abayomi, onde toca violão de sete cordas e canta. Este Quarteto foi selecionado pelo XXIV Prêmio da Música Brasileira pelo CD ‘Delicado’, gravado com o apoio do Proac, programa de ação cultural do Estado.
“Apresentamo-nos em programas como o Sr. Brasil e Movimento Violão, este gravado pela SESC TV”. Outro grupo em que ela atua é o Choro e Prosa, vencedor do Mapa Cultural Paulista, na categoria Música Instrumental.
“Recentemente, tivemos o prazer de nos apresentar no Festival Assad, em São João, com o Choro e Prosa. Para mim foi uma grande emoção. A influência na minha vida, desse encontro com o seu Jorge, foi muito grande”, finaliza.
CARNAGIE HALL
A primeira influência musical na vida de Jorge Assad pode ter vindo de sua mãe, que tocava flauta às escondidas do marido, o qual reprovava nela essa manifestação artística. Mais tarde, nos bares onde o turquinho praticava a sinuca, ele compra um número de rifa, cujo prêmio seria um cavaquinho. É claro que o seu número foi o premiado!
“Nesse tempo, tinha uma orquestra aqui em São João”, conta Dona Ica. Um dos músicos era amigo do Jorge, a quem ele pediu que afinasse o cavaquinho recebido na rifa. Como esse amigo não conhecia a afinação para cavaquinho, o fez na afinação de bandolim (de baixo para cima: Mi-Lá-Ré-Sol). Daí, ele aprendeu a tocar sozinho a música ‘Oh, jardineira / por que estás tão triste / mas o que foi que te aconteceu?’, cantarola. “Foi a primeira música!”. Depois de casado com Dona Ica, a sua missão foi ensinar aos dois filhos as artes do violão. Comprou um instrumento no tamanho normal para o Sérgio e um violãozinho menor para o Odair, este com apenas oito anos, nessa época. “Ele amava o sucesso dos filhos, sentia muito orgulhoso, e falava assim: ‘Eu ainda hei de ver vocês tocando no Carnagie Hall [sala de espetáculos em Midtown Manhattan, na cidade de Nova York]”. Isso realmente aconteceu, mas ‘seu’ Jorge não pôde ir, ficou por aqui na torcida.
MAIO DE 2011
Considerando-se sempre “muito família”, Dona Ica confessa que sente muitas saudades desses tempos todos, com a família vencendo obstáculos, sempre de mudança para diversas cidades (Ribeirão Preto, Rio de Janeiro, Mococa, São João), da convivência com os filhos tornando-se músicos profissionais, graças ao marido. E dela mesma, que sempre gostou de cantar :“Eu canto desde menina!”Essa prática ganhou destaque quando, mais recentemente, sempre às sextas-feiras, ela e ‘seu’ Jorge se apresentavam no Peixotinho Bar, transformado-o em recanto musical e reunindo diversos músicos e cantores sanjoanenses. A clientela era atraída por uma enorme quantidade de chorinhos, sambas e outros ritmos brasileiros.
“Foi a partir disso, dessas rodas de músicas, que o Jorge começou a tocar na noite, aqui na cidade”.
O desencadeamento dessas lembranças todas acaba levando Dona Ica até o último dia com o marido.
“A gente morava no bairro Santo André. Eu estava na copa e escutei ele falar ‘Oh, Ica, me traz um pouco d’água que eu estou sentindo um negócio ruim’… Então, eu voltei da copa para a cozinha para pegar a água. Nesse momento, ele já tinha descido os quatro degraus até a parte de baixo. Quando ele deu a volta, já caiu no sofá. Eu corri até ele, encostei a cabeça dele no meu peito, no lado esquerdo, abracei ele. Ele morreu aqui, em mim…” Lá fora, corria o dia 28 de maio de 2011.