POR ALÉXIA MELISSA

Quem nunca na vida teve o desejo de voar? Ou até mesmo de poder observar o mundo de cima, como um pássaro no céu? Isso pode parecer meio impossível perante a condição humana, porém existiu uma personalidade em São João da Boa Vista que tinha esse “dom” espetacular. Com uma simples folha e canetinhas hidrográficas, o pintor Benedito Bernardes Soares registrava ambientes da cidade, como Praças, Igrejas e lugares que frequentava. A questão mais interessante em seus desenhos é o chamado “voo de pássaro”, uma habilidade rara em que o artista consegue imaginar um determinado local visto de cima. Bastava um passeio em volta da Catedral para quando Benedito, voltasse para casa, colocasse cada minúsculo detalhe no papel: desde edifícios, carros e pessoas, até árvores, objetos e expressões.

Benedito Bernardes Soares (Foto: Arquivo pessoal – Antonio Carlos Lorette)

O desenhista tinha problemas de alfabetização, escrevia frases desconexas e palavras erradas. Além disso, também era uma pessoa introvertida, com dificuldade em se socializar, sendo considerado por muitos como “um sujeito estranho”. O fato curioso é que a defasagem de Benedito Soares em alguns aspectos era compensada com uma memória fotográfica incrível, um talento por desenho indiscutível e uma genialidade enorme.

Essas características se dão por conta da Síndrome de Savant (Savant significa “sábio” em francês), um distúrbio psíquico raro, onde o indivíduo possui graves défices intelectuais, como séria dificuldade em se comunicar, compreender o que lhe é transmitido e estabelecer relações interpessoais. No entanto, possui inúmeros talentos, principalmente ligados à sua extraordinária memória. O pesquisador norte-americano, Bernard Rimland, afirma que, quando ocorre um dano no hemisfério esquerdo do cérebro, o hemisfério direito é compensado pela perda ocorrida. É por isto que Benedito dominava tanto certas habilidades e, outras, não. A síndrome é muito rara, um estudo da Universidade do Wisconsin prevê que existam menos de 100 indivíduos savants vivos atualmente no mundo.

Quem soube dizer mais sobre o pintor foi o arquiteto e professor Antônio Carlos Lorette, que não chegou a possuir contato direto com Benedito, mas relata tê-lo visto em 1973, numa exposição de arte. Na época, Lorette tinha seis anos, mas consegue recordar a primeira impressão sobre Benedito, como um sujeito excêntrico e totalmente fechado: “Porém, só conheci o trabalho do artista quando entrei na faculdade, entre os anos 1985 e 1986. Um professor perguntou de que cidade cada aluno era, e quando eu disse São João da Boa Vista, ele logo lembrou de Benedito Bernardes Soares, referindo-se a ele como um “artista primitivo”. Isso aconteceu porque o pintor estava sendo representado no Museu de Arte Primitiva de Assis, em São Paulo. Neste momento, Lorette ficou interessado em conhecer mais do artista e começou a colecionar alguns desenhos de sua autoria.

IGREJA NOSSA SENHORA APARECIDA- (Foto: Arquivo pessoal – Antonio Carlos Lorette)

Se Benedito participou de exposições e eventos artísticos, foi graças ao grande incentivo de Maria Luiza do Amaral (mais conhecida como Maisa) – professora de desenho do Instituto de Educação Cel. Cristiano Osório de Oliveira – que descobriu seu talento excepcional. Em 1969, ela o convida para participar do Salão Sanjoanense de Arte, promovido por Maisa e também por Fabio de Carvalho Noronha. Este é um grande marco do início do reconhecimento de Benedito Soares como artista, que começou a expor suas obras.
Outra figura importante que atuou como um agente nesta história, foi José Marcondes – um pintor sanjoanense, e aluno de Maísa – que o visitava e levava materiais de arte, com o objetivo de estimular Benedito a não desistir de desenhar. Afinal, sua arte era rica em personalidade e peculiaridade.

PRAÇA DA CATEDRAL- (Foto: Arquivo pessoal – Antonio Carlos Lorette)

Houve muitos altos e baixos na vida de Benedito, um deles foi sua prisão, em Espírito Santo do Pinhal. A sua arte era considerada por muitos uma “loucura”, o que preocupou sua madrasta e fez com que ela procurasse por ajuda. Contando o caso do enteado para o pastor, o líder religioso recomendou que o artista parasse de desenhar, dizendo que aquilo era “do demônio”, pois era impossível alguém em sã consciência “ver o mundo de cima”. Isso foi a principal razão de Benedito Soares se afastar dos desenhos, em seu pensamento, nada valeria a pena.

PRISÃO DE BENEDITO- Cadeia Espírito Santo do Pinhal – onde Benedito foi preso, arte em caneta hidrocor e lápis de cor, em cartolina. (Foto: Arquivo pessoal – Antonio Carlos Lorette)

Nos últimos anos de vida, Benedito Bernardes Soares ficou recluso em sua casa. Algumas pessoas levavam fotos 3×4 e ele as ampliava. “Certo dia encontrei com um familiar dele, e ofereci uma visita, levaria materiais de desenho para que ele voltasse a desenhar. Achei interessante quando o familiar disse que Benedito precisava caminhar no local e observar os detalhes, para só então poder colocar aquilo no papel”, comenta Antônio Carlos Lorette.

(Foto: Arquivo pessoal – Antonio Carlos Lorette)

O pintor faleceu dia 20 de agosto de 2017 e, infelizmente, não obteve o merecido reconhecimento enquanto vivo. Benedito é um dos Artistas Savants mais interessantes do Estado de São Paulo, sendo tomado como referência, às vezes. Ao pesquisar o nome “Benedito Bernardes Soares” na internet, não temos acesso a nenhuma informação ou obra, por isso é dever do cidadão resgatar a própria cultura, que por sinal é demasiada rica. O artista nos deixou de herança seus desenhos, que retratam de forma única e perspicaz nossa região. Eles são uma experiência de voar sem sair do chão: basta apenas perceber os detalhes e imaginar um mundo em altas perspectivas, assim como Benedito um dia o fez.