POR JEFERSON BATISTA
A combinação samba e São Paulo sempre foi questionada por muita gente. O ritmo musical, provavelmente nascido na Bahia, ganhou espaço no Rio de Janeiro e, ao longo do tempo, tornou-se o principal produto cultural carioca. Diante disso, parecia que a metrópole paulistana – a capital do trabalho – e as regiões interioranas do estado – grandes produtoras agrícolas – não eram locais para fazer samba.
Algumas figuras, contudo, desafiaram esta tese e colocaram o bumbo – instrumento característico do ritmo em São Paulo -, suas vozes e corpos a serviço desta manifestação cultural intensamente ligada às senzalas. Vale lembrar que, no estado, o samba tem sua origem na vida rural das negras e negros escravizados. No decorrer dos anos pós-abolição da escravidão, com o êxodo para a metrópole em crescimento, o samba rural encontra outras manifestações artísticas que dão origem ao particular samba paulista.
Entre os personagens que figuram na história do samba da terra do trabalho, está Geraldo Filme (1928-1995). Paulistano de nascimento, sanjoanense de batismo, tem em sua trajetória a marca do interior e a influência das manifestações negras.
Seu legado, segundo o historiador Amailton Azevedo, “é deixar uma marca particular para o samba, desconstruindo a ideia de que São Paulo não sabe fazer música”. Professor de História da África e do Brasil na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Azevedo continua dizendo que o sambista “desfaz essa imagem de que São Paulo não tem bom samba e projeta a cultura negra no centro de uma outra narrativa, em que estas pessoas são parte integrante da história”. As pesquisas do historiador, que também é músico, resultaram no livro Sambas, Quintais e Arranha-Céus: as Micro-Áfricas em São Paulo (2016).
A trajetória de Geraldo, ou Geraldão, como era conhecido nas rodas de samba nas periferias paulistanas, é permeada por um ativismo em defesa da música popular. Desafiou seu próprio pai, um daqueles que afirmavam a suposta superioridade do samba do Rio de Janeiro em relação ao samba paulista. Diante dessas críticas, Geraldo compunha. A canção Eu Vou Mostrar é conhecida por dar uma resposta a estas pessoas. Na letra, Geraldo esclarece: Eu sou paulista, gosto de samba / Na Barra Funda também tem gente bamba / Somos paulistas e sambamos p’ra cachorro/ P’ra ser sambista não precisa ser do morro.
Esta música, inclusive, é considerada a primeira composição do sambista, feita quando ele tinha apenas 10 anos. Contudo, o historiador da PUC-SP destaca que o pai do sambista era músico e vivenciou a produção musical carioca durante uma temporada. Sendo assim, sua crítica não era para ofender, mas para mostrar que os sambistas cariocas estavam melhores equipados em termos de instrumentos, enquanto que os de São Paulo tinham que fabricar seus próprios instrumentos, de forma caseira, o que prejudicava a qualidade musical.
SAMBA PAULISTA
As diferenças entre o samba produzido nas duas localidades mobilizou um debate acalorado nas décadas de 1970 e 1980. Até Vinícius de Moraes entrou na cena quando afirmou, em 1960, enquanto assistia a um show com o compositor Johnny Alf, na paulistana Rua Consolação, que “São Paulo é o túmulo do Samba”. Apesar de controvérsia, a fala, que repercutiu na imprensa, não agradou os bambas de São Paulo.
Por seu turno, o dramaturgo Plínio Marcos (1935-1999), grande incentivador do samba paulista, publicou artigo no jornal Folha de S.Paulo, em 1977, quando falou sobre as características peculiares do ritmo feito pelos paulistas. “O samba paulista é diferente do samba baiano que se instalou no Rio de Janeiro a partir da casa das ‘tias’. O samba paulista é mais puxado ao batuque, ao samba de trabalho. Do toco, durão. O samba paulista vem das fazendas de café”.
Canções como Eu vou Mostrar levam a musicista e também historiadora Lígia Nassif Conti a dizer que “Geraldo Filme foi um dos baluartes do samba paulista e um de seus mais engajados defensores”. Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Conti é autora da tese A memória do samba na capital do trabalho: os sambistas paulistanos e a construção de uma singularidade para o samba de São Paulo (1968-1991). Considerando estas peculiaridades, Geraldo se tornou, então, um bamba, expressão utilizada para se referir a grandes sambistas.
GERALDO VIVE
O legado do artista, defendido pelos historiadores, está presente em diferentes partes da cidade de São Paulo, em São João da Boa Vista e outras localidades do interior. Na capital e na região metropolitana, os versos de Geraldo Filme, bem como de outros grandes nomes do samba de décadas passadas, como Toniquinho Batuqueiro, Clementina de Jesus e Adorinan Barbosa, são entoados em pelo menos 54 rodas de sambas, mapeadas pelo Guia do Circuito de Roda de Samba de SP, publicação lançada pela deputada estadual Leci Brandão (PCdoB). Na cidade em que foi batizado e viveu até os cinco anos, Geraldo Filme também vive nas rodas e apresentações. O músicos sanjoanenses do Grupo Si Tivesse Dó, criado em 2008, tem levado o nome e as canções do sambista para seus ouvintes. O grupo fez parte de um projeto chamado Resgate do Samba, realizado em um Ponto de Cultura de São João da Boa Vista. “Era contada a história do samba, de seus intérpretes e compositores”, afirma o músico André Luiz Paula Souza, que toca violão no grupo.
“Nos anos de 2008 e 2009, realizamos shows no Projeto Seis da Tarde, relembrando sambas de várias gerações, bem como um tributo à Adoniran Barbosa e Geraldo Filme”. No repertório dos sambistas sanjoanenses estão Silêncio no Bexiga, Eu vou pra lá, Vai no bexiga pra ver, A morte de Chico Preto, todas composições de Filme.
BATISMO EM SÃO JOÃO DA BOA VISTA
É na letra da canção Eu vou pra lá, inclusive, que o sambista Geraldo Filme diz ser “nascido num terreiro em São João da Boa Vista”. Apesar da afirmação na música, evidências mostram que o artista veio ao mundo, na verdade, na capital paulista, em 1928. Contudo, já que sua família materna era sanjoanense, viveu na cidade até completar cinco anos de idade e depois retornou para a capital do estado. Azevedo desenvolveu a noção de micro-áfricas para analisar a trajetória pessoal e musical de Filme. “O conceito consiste em pensar um conjunto de expressões culturais negras que resistiram ao processo de branqueamento que a urbanização paulista impôs aos seus habitantes”, afirma o pesquisador.
Apesar de não existir um mapeamento detalhado dos primeiros anos de sua infância, o historiador afirma que São João da Boa Vista pode ser considerada a manifestação de sua primeira micro-áfrica. Em outras palavras, foi na cidade, ainda no seio de sua família, que ele teve contato com elementos da cultura negra, em festividades que mesclavam música, poesia e religiosidade.
Festa era o que não faltava em sua família. Em depoimento raro sobre sua infância, o músico conta que foram “três dias de festa” quando foi batizado e continua: “eu só podia gostar disso. Era batuque no quintal pros nego véio, pros mais novo samba na sala e vamos s’embora”.
Por sua vez, Conti afirma que a “vivência nos batuques negros das cidades interioranas deve-se à presença de sua família nessas festividades desde sua infância”. A historiadora destaca ainda como o sambista se colocava em suas próprias canções para contar momentos e causos de sua vida. “Em Batuque de Pirapora, o sambista conta em primeira pessoa a história de um menino preto que foi impedido de estar em uma procissão católica e que foi levado por sua mãe ao batuque de terreiro”, afirma.
ENTRE MARMITAS E RODAS DE SAMBA
Não é possível saber exatamente como a família do cantor migrou do interior para a capital. Relatos levantados por pesquisadores mostram que a vida na cidade de São Paulo foi de muito trabalho como fiel ajudante de sua mãe, que mantinha uma pensão na Barra Funda. Viúva, já que o pai de Geraldo Filme morreu quando ele ainda era criança, educou o filho sozinha. Além de colaborar nas tarefas da hospedagem, Geraldo entregava marmitas a domicílio. Ao circular pelo bairro, teve contato com muita gente e com muitas manifestações artísticas.
No extinto Largo da Banana, na ficava localizado na Barra Funda, região considera o berço do samba paulistano, o músico teve contato com os praticantes da tiririca, conhecida também como pernada – uma variação paulista da capoeira. “Em razão dos profundos laços de solidariedade praticados pela comunidade negra em São Paulo, Geraldo Filme também vivenciou desde muito novo os cortejos carnavalescos dos cordões”, relata a historiadora doutora pela USP, que também é professora de História da Música, entre outras disciplinas, do Conservatório de Tatuí, no polo localizado em São José do Rio Pardo. Contudo, Azevedo relata em suas pesquisas que “durante a infância e adolescência teve que conciliar seu entusiasmos junto ao samba com seu trabalho de entregador de marmitas”.
Estas manifestações culturais tiveram papel importante na sua carreira como cantor. A vocação musical, que veio do berço, da observação dos seus familiares, ganhou força ao estabelecer laços nas ruas de São Paulo. Diversas rodas e escolas de samba tiveram o privilégio de ouvir ou tocar as composições de Geraldo, autor de muitos sambas-enredos. Entre eles, o Solano Trindade, Moleque de Recife, enredo da Vai-Vai em 1976, que homenageou Solano Trindade, grande artista pernambucano.
“Os lugares de música onde Geraldo morou, frequentou e conviveu circunscreveram-se na Barra Funda, Campos Elísio, Bixiga e Liberdade, e diversas escolas de samba, entra as quais estão a Paulistano da Glória, Colorado do Brás, Camisa Verde, Unidos do Peruche e Vai-Vai”, ressalta Azevedo.
Apesar disso, o sambista gravou apenas um álbum solo durante sua carreira, que recebeu seu nome, em 1980. Antes deste trabalho, ainda na década de 1970, ele participou de dois álbuns de Plínio Marcos, Balbina de Iansã (1971), que era trilha sonora de uma peça teatral do mesmo nome, e Plínio Marcos em prosa e samba: nas quebradas do mundaréu (1974), LPs fundamentais para quem quer conhecer o samba paulistano. “Os trabalhos de Plínio Marcos trazem não apenas a voz, mas também composições de Geraldo Filme, num precioso registro sonoro e fonte de pesquisas sobre a cultura negra em São Paulo”.
“Antes disso, participou das gravações de um disco que reunia os sambas de enredo do carnaval paulista de 1968 e que foi lançado em 1969”, relata Conti, que reflete ainda sobre a dificuldade que sambistas enfrentavam no mercado. “Com relação ao mercado musical e à profissionalização dos músicos em São Paulo, há que se ressalvar que pouco espaço era concedido aos músicos negros, que muitas vezes manifestaram sua insatisfação em razão das portas frequentemente fechadas”.
Sobre isso, o próprio sambista afirmou que as gravadoras “não conseguem ver que o samba rural tem potencial para vender tanto quanto qualquer outro”, como consta na tese de Conti.
Uma importante canção de Geraldo Filme é Tebas, que conta a história de um negro escravo arquiteto, que “construiu a velha Sé em troca da carta de alforria”. Esta música é mais um exemplo de como o cantor, que também foi um militante político negro, lutou para destacar os seus. Compunha e cantava sobre as mudanças na cidade, a vida dos antepassados na roça, o carnaval e as festas. Lembrar de sua trajetória, é resgatar também a história da cultura paulista.