Para viverem juntos, o filho de um coronel e uma ex-prostituta enfrentam uma sociedade tradicional na segunda metade do século XX


POR JEFERSON BATISTA

“O amor é sempre o melhor caminho”, afirma a escritora Silvia Ferrante ao falar sobre o casal Bilú e Rosinha, formado por um filho do coronel mais importante da região e por uma moça pobre, jogada às margens da sociedade, que encontrou na prostituição a única forma de sobreviver. Silvia conta sua versão desta história no livro A Primeira Dama (IDB, 2011) e é apoiando-se nesta obra e em uma entrevista com sua autora que revisitamos nesta reportagem a trajetória de sofrimento, luta, resistência, amor e prazer desses personagens que fazem parte da memória sanjoanense.

A resistência foi a grande aliada do casal composto por duas figuras, de certo modo, revolucionárias, que desafiaram o statu quo de uma sociedade interiorana do século passado. Uma história antiga e local, mas com relevância até os dias de hoje em diferentes lugares, inclusive no exterior. O livro de Silvia ganhou uma versão em inglês chamada The First Lady e é facilmente encontrada em sites de livrarias portuguesas. “É um livro que conta uma história Universal, ou seja, uma história de amor. Tem todos os ingredientes de que as pessoas gostam”, comenta a escritora, membro, desde 2008, da Academia de Letras de São João da Boa Vista.

O amor de Bilú e Rosinha tirou os véus de uma sociedade que escondia muita hipocrisia. A simples presença deles no Theatro Municipal ou na Igreja Catedral, por exemplo, era suficiente para incomodar muita gente. Além disso, os sentimentos dele por ela não deram coragem apenas para confrontar a alta sociedade sanjoanense, mas colocaram combustível em um motor que promoveu uma renovação urbana e cultural em São João.
Em busca de construir um mundo seguro, divertido e confortável para sua amada Rosinha, o rico e influente fazendeiro Bilú construiu casas, igreja e reergueu um clube. Apesar de respeitar sua família e a sociedade tradicional, o casal rompia com alguns costumes conservadores e se tornavam um exemplo para uma juventude disposta a trazer novos ares para a cidade. Nesse processo, Rosinha mostrou ser uma mulher forte, inteligente e amável. Diante das adversidades, ela foi “uma mulher que teve muita coragem e determinação”, como avalia Ferrante. “Enfrentou provações que dariam a muitas pessoas, motivos para desistir de tudo, porém, continuou em frente e escreveu sua história”.

DA POBREZA AO LUXO

Rosinha foi Maria da Costa que, como define a escritora sanjoanense, “passou da menina paupérrima, a uma senhora da sociedade, à duras penas”. Filha do ferreiro José Manoel da Costa e da lavadeira Inês Ferreira da Costa, vivia em Araguari, no triângulo mineiro com a família. Em 1919, com pouco mais de 10 anos, deixou aquele local para sempre. Foi levada, por um padre, para trabalhar de babá em São Paulo. Na capital paulista, o luxo da casa onde chegou para cuidar de três crianças a encantou. Nunca havia visto um local como aquela. Apesar de ter um quarto confortável, a menina estava longe de ter uma boa vida. Trabalhava muito no cuidado das crianças e o fato de não saber ler, escrever e ver horas, dificultava ainda mais. Ainda que sua patroa confiasse em seu trabalho, as coisas ficaram insustentáveis quando a dona da casa fantasiou que seu marido estava de olho na menina. Temendo o pior, uma outra empregada da casa, arrumou-lhe um casamento com João Luis da Cunha Pereira, um barbeiro de Limeira, no interior de São Paulo, primo da tal empregada. A dona da casa se livrou de Maria, que, por sua vez, ganhou um noivo sem pedir.

Em Limeira, Maria passou a viver com João Luis. Conheceu pessoas na cidade e levava uma vida relativamente tranquila. Até que no Natal de 1923, flagrou seu marido na cama com um outro homem. Eram tempos mais difíceis que os atuais para homossexuais. Um casamento de fachada era uma ótima saída para esconder uma identidade sexual. Mas, nesse caso, a vida dupla prejudicou a jovem Maria, que, mais uma vez, viu-se obrigada a deixar o local onde vivia em busca de novos ares. Sendo assim, rumou para Santos com uma amiga que havia feito em Limeira.

No litoral paulista, passou a viver de favor. Sem saber ler e escrever, não conseguia trabalhar no comércio ou nas fábricas. Sua única experiência profissional fora como babá, em São Paulo. A pessoa que a recebia, prima de sua amiga de Limeira, já havia colocado a situação: não teria condições de sustentar Maria, nem por um dia. Com o fim de suas reservas, a moça estava preocupada.

Em abril de 1924, Maria teve contato com Aninka, dona do chamado Cabaré Polonês. Sem recursos, Maria topa ser “uma das damas do cabaré” e passa a chamar Marie, uma personagem para fazer aquele trabalho que não lhe agradava, como relata Silvia. Os cabarés em Santos eram frequentados por figuras importantes da alta sociedade paulista e até de outros países. Coronéis, políticos e militares, muitos casados e com filhos, buscam sexo e diversão nessas casas onde o prazer era facilmente comprado. Os rapazes sanjoanenses Zuza e Bilú, quando estavam na cidade santista, não deixavam de visitar esses locais e foi em uma dessas visitas que conheceram Marie.

DO LITORAL PARA O INTERIOR

Zuza se encantou com a beleza da jovem e prometeu lhe dar uma boa vida em São João da Boa Vista. Muitas damas dos cabarés, jovens oriundas de camadas populares, sonhavam com a chegada de um príncipe encantado que as tirariam daquele lugar. Tudo indicava que a vez de Maria havia chegado. Mas, na verdade, o jovem rico de São João adorava zombar da vida e das pessoas e sua ideia era enganar a jovem. Bilú, seu companheiro daquela noite, tentou demovê-lo de seus objetivos. Mas não conseguiu. O fato é que algum tempo depois, eles buscam Maria e a levam para o interior. Chegando em São João, Maria não encontrou nenhuma coisa confortável. Foi deixada em uma pensão, onde ficou sem entender o que estava se passando, até cair a ficha que estava sendo enganada. Zuza desapareceu.

Bilú, no entanto, fez o movimento contrário: se aproximou da moça. Suas visitas à pensão eram diárias e o pagamento pela hospedagem ficou sob sua responsabilidade. Eles se tornavam amigos. “Enquanto essa amizade crescia, o coração de Bilú foi enchendo-se cada vez mais de amor e carinho por ela”, escreve Silvia.

O FILHO DO CORONEL

Bilú não era apenas um jovem com posses. Ele era Cristiano Osório de Oliveira Filho, braço direito de seu pai, o coronel Cristiano Osório de Oliveira, o maior fazendeiro e banqueiro da região. A família, que tinha Gabriela como matriarca, era composta por 11 irmãos. O filho que levava o nome do pai era seu “substituto natural, ele sabia disso e preparou-se para esse fim”, registra A Primeira Dama. O casamento com uma jovem à sua altura social era, sem dúvida, outra coisa praticamente natural.

Sua posição social, contudo, não o impediu de se declarar à Maria em uma das noites que a visitou na pensão. Talvez ele até imaginasse o que aquele amor pudesse causar em sua família, tradicional, rica, alicerce e exemplo para de uma sociedade. Mas não estava preocupado com isso. A questão é que a jovem ficou perdida, assustada. Não entendia porque Bilú estava falando aquilo e, dias depois, voltou a Santos, sem dizer nada ao jovem fazendeiro.

Bilú caiu de cama. “Doença de amor”, diziam pela cidade. Seus pais, que estavam em Santos, onde o coronel tinha negócios, tomam conhecimento da situação e ficam abismados ao saber do caso. Como seu filho poderia estar doente por causa de uma prostituta? Era algo inimaginável. Ainda que as famílias soubessem que seus pais e filhos frequentavam prostíbulos, era quase certo que aquilo era feito de forma secreta, às escuras.

De volta à São João, um padre afirma à família Osório que apenas a jovem poderia salvar Bilú da morte. Para salvar o filho, Gabriela não vê outra solução a não ser recorrer à Maria. Diante do pedido, quase uma súplica, ela aceita voltar ao interior para visitar o jovem. A partir de então, a história ganha um novo capítulo.

UM NOVO CASAL SE FORMA

Maria e Bilú começam a se entender. Vendo que a moça fazia bem ao rapaz, a família autoriza que eles fiquem juntos. Mas foram morar na fazenda, longe dos olhares curiosos da cidade. “São João fervilhava com a novidade. Todos queriam saber sobre o novo casal”. As reprovações começam a entrar em cena.

Muitos irmãos se mostram contrários ao relacionamento e não admitiam que alguém como Bilú tivesse vivendo com uma prostituta. Sua própria mãe, Gabriela, apesar de reconhecer que Maria havia salvado a vida de seu filho, torcia que ele cansasse da moça e a mandasse de volta ao cabaré, em Santos. Isso nunca aconteceu.

De acordo com Silvia, Bilú foi “porto seguro” para Rosinha: “ela sabia que com ele ao seu lado nada poderia lhe acontecer”. As pessoas não disfarçavam o nojo que sentiam de Rosinha, o apelido que Maria ganhou do amado. Em 1930, por exemplo, o casal decidiu ir ao Theatro Municipal assistir uma apresentação do maestro Villa Lobos, um dos maiores artistas da época e amigo da sanjoanense Guiomar Novaes. Ao passo que o casal avançava para dentro do teatro, as pessoas iam se afastando. Poucos amigos tiveram coragem de cumprimentá-los. Olhares raivosos fitavam e pareciam queimar a pele dos dois, que seguiam para um camarote reservado.

Rosinha, muito religiosa, também sofria perseguições na Igreja Catedral. Sempre sentava ao fundo, para não ser notada, mas quando uma senhora a via, pedia ao sacristão para tirá-la do templo. Ela, por sua vez, ignorava a intromissão e continuava reclusa em suas orações. Mas seu coração entristecia. Não tinha paz nem na igreja. Se desejava se divertir, não podia. Sua presença era negada no Centro Recreativo Sanjoanense. Certa vez, algumas mulheres chegaram a fazer uma barreira humana para impedir a entrada dela no espaço.

A vida do casal era boa e luxuosa, com direito a viagens constantes a Santos, São Paulo e até mesmo a Europa. Mas Rosinha não queria viver enclausurada quando estivesse em São João, apesar das violências cotidianas, queria participar da vida social, cultural e religiosa da cidade. Afinal de contas, tinha esse direito e sabia muito bem disso. O primeiro passo foi sair da fazenda e morar em uma casa construída no que à época era a periferia da cidade, na antiga Rua São João, atualmente Rua Getúlio Vargas.

O AMOR QUE RENOVOU SÃO JOÃO

Nas décadas de 1930 e 1940, apesar da sociedade tradicional ocupar espaço central em São João, a cidade já possuía um grupo de jovens que queriam mudanças, grupo do qual Bilú e Rosinha eram membros com certo protagonismo, inclusive tinham recursos e influência para promover qualquer mudança. “Eram revolucionários, não eram os tradicionalistas. Tinham pensamentos mais liberais. Eram livres pensadores onde não eram aceitos preconceitos de forma alguma. Respeitavam as tradições, mas não aceitavam a hipocrisia e o preconceito”, registra A Primeira Dama.

Com apoio desse grupo, capital político e financeiro, Bilú começou a forjar novos espaços sociais em São João, espaços em que Rosinha não seria expelida e, finalmente, poderia participar das atividades sem ser julgada. Além disso, é preciso registrar que a sociedade precisava das bem feitorias da família Osório. Eles eram um dos poucos milionários. Bilú, então, decidiu usar isso ao seu favor.

UM TEMPLO E UM CLUBE PARA ROSINHA

No final dos anos 1930, os religiosos redentoristas planejavam construir um santuário na mineira Poços de Caldas. Sabendo dessa ideia, Bilú procurou os padres e disse que estava disposto a ajudá-los, mas com uma condição: a igreja deveria ser construída em São João. “Já que Rosinha não poderia frequentar a Igreja Catedral, então ela teria uma igreja para ir, quando o Santuário de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro ficasse pronto”, mostra o livro de Silvia. E o resultado foi a construção do maior templo neocolonial do Brasil, que teve sua pedra fundamental lançada em 1941.

O Patrimônio histórico de São João da Boa Vista, o Santuário de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro celebrou os 80 anos de sua fundação. Construído com o intuito de abrigar na cidade uma Casa Missionária dos Padres Redentoristas, o espaço abriga diversas obras sacras e é considerado o maior templo neocolonial do Brasil.

Projetada pelo arquiteto Benedito Calixto Neto, responsável também pela nova Basílica Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, em Aparecida (SP), a igreja sanjoanense ganha destaque pela beleza e grandiosidade, sendo hoje um dos pontos turísticos mais visitados da cidade. Com 38 grandes vitrais e obras do pintor Gaetano Maomi, o local se tornou um refúgio perfeito para a amada do herdeiro dos Osórios, que, durante todo o processo de arrecadação de fundos para obra, participou ativamente na organização de eventos culturais e quermesses. No final da obra, conta Silvia, que Rosinha faz uma ligação entre a igreja e sua casa, que ficava do lado. Naquele momento, o casal já estava bastante conhecido por causa das benfeitorias e dos eventos sociais. “As festas que ela promovia eram famosas em toda a região. Rosinha foi uma batalhadora incansável, e assim, aos poucos, foi entrando na vida da sociedade”.

Com a morte do coronel Christiano Osório, seu filho Bilú toma, finalmente, a centralidade dos negócios e da sociedade. No final dos anos 1940, assume a presidência da Sociedade Esportiva Sanjoanense, que na época não contava mais do que com um campo de futebol e uma quadra de tênis. Em sua gestão, o clube ganha uma sede social e uma piscina olímpica. Grandes festas começam a ser realizadas no local. Rosinha, mais uma vez, toma frente na organização dos eventos sociais, que passam a atrair muita gente e a beneficiar os comerciantes locais. A mulher que não podia entrar em espaços sociais, era, agora, uma grande incentivadora dos comerciantes locais e responsável pela diversão da cidade. Algo, no entanto, ainda incomodava Bilú. Ele e Rosinha não eram oficialmente casados. A mãe dele, quando Rosinha chegou em São João para ficar, pediu para que eles não se casassem até as coisas se acertarem. Porém, muitos anos se passaram e esse pedido não fazia mais sentido. Sendo assim, em dezembro de 1945, o casal coroa o amor em uma pequena e privada cerimônia para amigos, em São Paulo. “Foi um belo jantar com músicos e boa comida para alguns amigos queridos e mais chegados. De São João, vieram poucas pessoas”, relata Silvia em sua obra. Nunca tiveram filhos, Rosinha chegou a engravidar, mas perdeu o feto.

Vinte anos depois, Bilú faleceu, aos 69 anos, vítima de um tumor abdominal. Seu enterro, no Cemitério São João Batista, foi sóbrio, sem homenagens. Atendendo seu pedido, o corpo foi sepultado em um túmulo simples, não no imponente mausoléu da família Osório de Oliveira.

A morte do amado levou a vontade de viver de Rosinha. Em 1977, após escrever um bilhete dizendo o que queria, dona Rosinha, como era conhecida, mostrando que tinha certa autoridade na cidade, comete suicídio utilizando uma arma que mantinha em uma gaveta no seu quarto.

A autora Silvia Ferrante, que escreveu o livro A Primeira Dama, contou a história de Bilú e Rosinha, reconstituindo a São João dos anos de 1930 e 1940. O amor de Bilú e Rosinha tirou os véus de uma sociedade interiorana que escondia muita hipocrisia. A simples presença deles no Theatro Municipal ou na Igreja Catedral, por exemplo, era suficiente para incomodar muita gente. A obra conta ainda com o prefácio do jornalista Luis Nassif.

Amigos, funcionários e muitos curiosos acompanharam o velório realizado em sua capela privada. Os bens do casal foram distribuídos para pessoas muitos próximas (seus funcionários) e para diversas instituições sociais de São João e região, especialmente a Santa Casa Dona Carolina Malheiros – o casal, ainda que mortos, fizeram o bem para a sociedade que tanto os julgou em vida.

Será a rosinha? Recentemente, foi encontrado um suposto retrato de Maria da Costa, dona Rosinha, caracterizado como dama do século XVIII, pelo artista italiano Sinibaldo Tordi, 1951. A peça faz parte da coleção do historiador Antonio Carlos Lorette, que está pesquisando sobre o quadro.